Desde 2005, decisões com impacto direto na vida do consumidor são tomadas longe do debate público

Nenhuma ponte se ergue da noite para o dia. Ou, ao menos, não deveria. Há um protocolo não escrito que exige tempo, estudos, escuta. Avalia-se o impacto, ouvem-se as vozes, pondera-se o risco. Em teoria, é assim que se decide o que pode — ou não — atravessar um rio.
Curiosamente, esse mesmo rigor não se aplica aos organismos geneticamente modificados (OGMs). No Brasil, liberações comerciais parecem dispensar o peso da dúvida. Mesmo diante de alertas sobre danos ecológicos, riscos à saúde e concentração de poder no campo, a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) nunca rejeitou um único pedido. E o pior: boa parte das autorizações se apoia em estudos de curto prazo, quase sempre conduzidos ou financiados pelas próprias soliciantes.
Não são companhias de fundo de quintal. A campeã de aprovações é a Monsanto, com 38 pedidos liberados. Na sequência, vem a extinta DowDuPont (desmembrada nas empresas Dow, DuPont e Corteva), com 22 aprovações. E a Syngenta, com 19.
Já são ao menos 131 liberações comerciais de OGMs do tipo planta no Brasil, segundo a última contagem da CTNBio, de 17 de julho de 2024. A lista inclui milho (64), soja (22), algodão (25), eucalipto (10), cana-de-açúcar (7), farinha de trigo (2) e feijão (1) – em sua maioria, commodities que viram ração animal e ingredientes de ultraprocessados consumidos por milhões de brasileiros. Da barra de cereal da academia ao chocolate da sobremesa.
E tudo isso é feito a toque de caixa. Em 2021, ano mais recente com dados consolidados, a comissão analisou 1.086 processos ligados à biotecnologia. Aprovou 1.028, indeferindo apenas 18.
Essas decisões foram tomadas ao longo de 16 reuniões, cada uma com no máximo quatro horas. Na média, foram cerca de 17 processos aprovados por hora — menos de quatro minutos por caso.
Rubens Nodari, engenheiro agrônomo e professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), representa o Ministério do Meio Ambiente na CTNBio. Com décadas de experiência em genética e biossegurança, conhece a engrenagem por dentro — e não poupa críticas. “As empresas entram com o pedido e saem com o carimbo. Não há confronto de ideias, nem debate técnico de verdade”, resume.
Também em 2021, a CTNBio autorizou 28 liberações comerciais — sete delas de plantas transgênicas. Se tivesse se dedicado apenas a esses pedidos, o tempo médio disponível para análise, exposição, debate e votação seria de pouco mais de duas horas por processo. Como a agenda incluiu centenas de outros temas, é provável que cada liberação tenha sido decidida em bem menos tempo.
E tudo isso é feito com pouquíssima transparência. O comitê técnico pode deliberar em sessões fechadas, restringir o acesso a dados técnicos e dispensar a participação de outros órgãos públicos nas decisões. É nesse ambiente opaco que se consolida o fenômeno conhecido como captura regulatória — quando uma instância estatal, em vez de proteger o interesse coletivo, passa a operar em alinhamento com os setores que deveria fiscalizar.
O Joio passou dois meses investigando a CTNBio. A reportagem entrevistou ex-integrantes da comissão, especialistas em regulação, representantes do Ministério Público e de organizações da sociedade civil. O resultado é um diagnóstico da comissão que decide, sem contraponto, o que pode ser plantado em território brasileiro.
Entrada ilegal e ampliação de poderes
Goste ou não, a terra tem humores próprios. A chuva atrasa o plantio, o veranico sabota a colheita, a lagarta-do-cartucho sobrevive ao veneno, a ferrugem escapa da previsão. O capital, avesso ao acaso, tentou converter a paisagem agrícola em linha de montagem. Foi assim que surgiram os transgênicos: um esforço para domar o campo com o bisturi da ciência. E, quando a natureza desobedece, ela é reprogramada.
Em maio de 1994, chegava às gôndolas dos Estados Unidos o primeiro alimento geneticamente modificado aprovado para consumo humano. Desenvolvido pela Calgene, na Califórnia, o tomate Flavr Savr teve um gene desativado para retardar o amolecimento do fruto. Com isso, podia permanecer mais tempo no pé, dispensando o uso de gás etileno comumente aplicado no processo convencional de amadurecimento.
Na época, a FDA (a Agência Nacional de Vigilância Sanitária de lá) considerou o produto “nutricionalmente equivalente” ao tomate convencional. Como não apresentava “riscos conhecidos à saúde”, foi dispensado de rotulagem especial.
Apesar da estreia promissora, o Flavr Savr logo esbarrou na desconfiança dos consumidores. Somaram-se a isso os altos custos de produção e a inexperiência da fabricante com cultivo e logística, que acabaram inviabilizando o projeto. Em 1997, apenas três anos após o lançamento, o tomate foi retirado do mercado. Pouco depois, a empresa foi adquirida pela Monsanto.
O fracasso comercial, no entanto, não diminuiu o apetite da indústria. Ao comprar a Calgene, a Monsanto incorporou sua equipe científica e o know-how regulatório. Mas deixou de lado o apelo ao consumidor final. Preferiu focar em commodities agrícolas, a começar pela soja Roundup Ready, lançada em 1996, resistente ao glifosato, herbicida que ela própria produzia.
A estratégia consistia em alinhar biotecnologia e insumos químicos num modelo de produção verticalizado. Deu certo. Enquanto o Flavr Savr saía de cena, a soja transgênica tomava conta das lavouras da América do Norte — e, logo depois, da América do Sul.
A Argentina foi o primeiro país latino-americano (e o segundo no mundo) a autorizar o cultivo da soja transgênica, ainda em 1996. A adoção foi rápida e massiva, transformando o país numa das principais vitrines da tecnologia da Monsanto.
O Brasil, por outro lado, viu as sementes entrarem ilegalmente a partir de 1998, sobretudo no Rio Grande do Sul — antes de qualquer liberação oficial. Estima-se que milhões de hectares já estavam plantados com soja não autorizada antes da regularização.
Em 2003, uma medida provisória legalizou, provisoriamente, o plantio da safra já em curso. A regularização definitiva viria em 2005, com a nova Lei de Biossegurança, que deu à CTNBio o poder exclusivo de liberar OGMs no país.
Instituída pela primeira Lei de Biossegurança, de 1995, a CTNBio nasceu como um órgão federal de caráter consultivo. Sua função era emitir pareceres técnicos. A palavra final para a liberação de organismos geneticamente modificados cabia aos ministérios do Meio Ambiente e da Saúde, por meio do Ibama e da Anvisa, respectivamente.
O redesenho do papel da CTNBio em 2005 abriu espaço para que a comissão agisse por conta própria. Pela regra atual, ela pode até convocar representantes de outros órgãos para prestar informações, mas não é obrigada a fazê-lo. Na prática, essa brecha blindou suas decisões de qualquer instância de controle externo.
Para Nodari, a atual Lei de Biossegurança se afastou de sua finalidade. “Talvez fosse melhor nem haver uma lei”, arrisca. Ele defende que as decisões sobre o uso de OGMs deveriam continuar com os ministérios, como ocorria antes de 2005. Na sua avaliação, a legislação serve como chancela automática aos interesses privados: a cada liberação, um selo de prestígio carimbado pelo Estado.
Conflito de interesses mascarados
A CTNBio é composta por 27 membros titulares e seus respectivos suplentes, em sua maioria com título de doutor. Vinte e três cadeiras são preenchidas sob forte influência do Executivo federal, especialmente do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), ao qual a comissão é vinculada.
Fontes que acompanham seu funcionamento apontam um primeiro problema na composição: a predominância de perfis ligados à genética.
Uma configuração mais diversa poderia incluir especialistas de saúde pública, ecologistas, juristas e representantes da agroecologia, por exemplo. Todos esses campos têm contribuição técnica legítima, além de serem diretamente afetados pelas decisões da CTNBio. No entanto, o atual modelo de composição — centrado em doutores com forte vínculo acadêmico e científico tradicional — tende a excluir esses perfis.
Mas o segundo problema talvez seja ainda mais grave: vários dos membros da CTNBio mantêm vínculos diretos ou indiretos com empresas do setor.
O atual presidente da comissão é o biólogo Leandro Vieira Astarita, doutor em Ciências Biológicas, com atuação em áreas como fisiologia vegetal e transformação genética. Além da trajetória acadêmica, Astarita também é sócio-administrador da Astos Agrotecnologia Ltda., empresa derivada de pesquisa científica que, segundo seu currículo Lattes, “desenvolve produtos biológicos baseados em investigação científica, para o crescimento e defesa de plantas”.
Fontes ouvidas sob anonimato disseram ao Joio que Astarita costuma se declarar impedido — ou seja, alega conflito de interesse e se retira da deliberação — em votações relacionadas à Suzano Papel e Celulose. O mesmo ocorreria com a pesquisadora Maria Helena Zanettini em processos ligados à Sempre AgTech. Atas consultadas pela reportagem confirmam abstenções de ambos nesses contextos.

O regimento da CTNBio orienta que seus membros se declarem impedidos quando têm vínculo direto com a empresa que apresentou o pedido, participam da unidade responsável pelo projeto em análise ou mantêm relação contratual, societária ou familiar com partes interessadas. O detalhe é que não há exigência de justificativa: basta declarar o impedimento — sem precisar explicar os motivos.
Questionada, a Secretária de Políticas e Programas Estratégicos (SEPPE) do MCTI confirmou que os membros não precisam explicar por que se afastam ou permanecem nas deliberações. “Partimos do pressuposto de que a própria declaração de impedimento, suspeição ou de conflito de interesse é manifestação idônea e suficiente para afastá-lo da análise do processo e assim manter a integridade e a impessoalidade da análise da solicitação apresentada”, respondeu por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI).
A pasta argumenta que seus integrantes acumulam funções, trabalham de graça e redigem pareceres “nas noites e madrugadas”. Por isso, conclui que “há de se dispensar a cada um deles a adequada deferência […] tendo em vista a presunção de sua boa-fé e idoneidade”.
O MCTI também admitiu que nunca fez qualquer levantamento sobre os impedimentos declarados — nem os motivos, nem o impacto nas decisões do colegiado. Em nota, afirmou que não “visualiza” necessidade de elaborar esse tipo de relatório.
As informações sobre votações, impedimentos e decisões da CTNBio estão dispersas em atas mensais, organizadas por ano. Para reconstruir o histórico de deliberações, é preciso consultar documento por documento — uma tarefa que exige tempo e persistência. Além disso, muitos trechos aparecem como sigilosos, o que impede uma análise completa. Mesmo pedidos formais (via LAI) para consolidar essas informações foram negados.
A reportagem tentou, por diversas vezes, entrevistar o presidente da CTNBio. A resposta oficial foi que Leandro Astarita estava de férias. A assessoria do MCTI não soube informar desde quando, nem quando ele voltaria ao trabalho. Também não indicou ninguém para falar em seu lugar.
Troca de favores
O engenheiro agrônomo Leonardo Melgarejo ocupou a suplência da cadeira do Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA) entre 2008 e 2024. Para ele, o problema está na confiança irrestrita que se deposita no julgamento individual. “Mesmo quando um membro se afasta de um processo diretamente ligado a ele, suas ideias continuam representadas por aliados dentro da comissão”, pondera.
Segundo Melgarejo, o impedimento formal nem sempre garante isenção. Em casos de vínculo direto com a empresa ou o projeto em análise, o membro se declara impedido — como prevê o regimento. Mas isso não significa que sua influência seja neutralizada.
O que se desenha, segundo ele, é um pacto silencioso entre aliados. Quando um pesquisador tem ligação direta com a empresa responsável por um pedido, ele se declara impedido. Porém, segue participando das votações de colegas que compartilham a mesma visão. Esses, por sua vez, fazem o mesmo: se afastam dos seus próprios casos, mas seguem ativos nos demais.
Assim, mesmo sem infringir nenhuma regra, formam-se blocos de afinidade. Pedidos ligados a transgênicos são aprovados com facilidade, sem que haja registro formal de conflito ou favorecimento.
Melgarejo chama de “comportamento de manada” o que vê se repetir nos bastidores da ciência regulatória. Muitos se alinham ao discurso tecnológico não por convicção, mas porque é mais fácil. Questionar cobra um preço. E nem todos estão dispostos a pagar. “Tem gente que não sustenta um debate técnico mais sério. São esses que acabam premiados com convites para eventos na China, Inglaterra, Alemanha”, observa.
Para liberar o plantio em larga escala e o consumo de uma espécie transgênica, a CTNBio exige maioria absoluta: 14 dos 27 votos. Mesmo que quase metade do colegiado aponte riscos técnicos, a aprovação pode seguir adiante.
Essa regra foi instituída por medida provisória em 2006 e, no ano seguinte, convertida em lei. Até então, a liberação de OGMs exigia quórum qualificado: dois terços dos membros, ou 18 votos favoráveis. A alteração, segundo a ex-integrante Marijane Lisboa, não foi acidental.
“Era descarado. Quando não conseguiam os dois terços, mudaram a lei”, diz. Ela lembra que, apesar de serem minoria, os representantes críticos compareciam com regularidade às reuniões, enquanto parte dos demais membros costumava se ausentar. “Metade faltava. Então tiraram os dois terços e colocaram maioria absoluta. Foi um jabuti legislativo.”
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Cadê a sociedade civil?
A ausência de representantes do campo crítico é mais comum do que se imagina. Das 27 vagas da CTNBio, apenas seis são reservadas à sociedade civil. E, hoje, nenhuma delas está ocupada nas áreas de Defesa do Consumidor, Saúde do Trabalhador e Meio Ambiente. Nem por titulares, nem por suplentes.
As ausências não parecem incomodar ninguém, incluindo o próprio MCTI, que afirmou, por meio de sua assessoria, que “mesmo quando há vacâncias, a CTNBio mantém seu funcionamento normal”.

O exemplo mais evidente de inércia institucional é a cadeira de Defesa do Consumidor, desocupada desde janeiro de 2016, quando expiraram os mandatos de Marijane Lisboa e Solange Teles da Silva. Segundo o MCTI, o processo de substituição foi iniciado, mas segue parado — à espera de que o Ministério da Justiça indique novos nomes considerados “aptos a assumir a função”.
Tamara Andrade, especialista em regulação de alimentos do Instituto de Defesa de Consumidores (Idec), detalha os entraves burocráticos que mantêm a cadeira vaga, comprometendo o caráter plural e a legitimidade das decisões do colegiado.
Em maio de 2023, o Idec inscreveu três representantes para compor a lista que seria enviada ao Ministro da Justiça. Uma quarta inscrição, de outra entidade, também foi homologada.
Em abril de 2024, a Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon), vinculada à Justiça, lançou um edital para formar a lista tríplice que indicaria representantes da sociedade civil. As três inscrições feitas pelo Idec foram habilitadas.
A expectativa era que a comissão de seleção convocasse uma assembleia para definir os três nomes da lista final. “Não sabemos se essa assembleia chegou a acontecer. Tudo parou após a fase de homologação das inscrições”, explica Tamara.
Na avaliação de Tamara, essa estrutura de governança contribui para a dispersão de responsabilidades. O Ministério da Justiça escolhe os representantes dos consumidores, mas a CTNBio, vinculada ao MCTI, pouco ou nada cobra sobre o andamento das nomeações. “No fim, parece que ninguém sabe mais quem é responsável por quê.”
Diante da demora, o Idec decidiu retirar as candidaturas. Em nota, a organização informou que uma carta de desistência será enviada ao Ministério da Justiça, apontando a morosidade do processo como principal motivo da decisão.
Falta transparência
Além da escassez de vozes dissonantes dentro da comissão, a CTNBio mantém um nível de estratificação de conteúdos que limita a participação social.
Boa parte das discussões acontece em reuniões setoriais, protegidas por cláusulas de sigilo, o que impede o acompanhamento por observadores. As deliberações finais ocorrem nas reuniões plenárias, realizadas mensalmente, exceto em julho e janeiro.
A população até pode acompanhar as tratativas secundárias, que envolvem detalhes técnicos menores ou questões burocráticos. Mas está excluída dos debates principais sobre OGMs. Isso alimenta uma ilusão de transparência: embora haja formalmente consulta pública e possibilidade de envolvimento, as decisões mais sensíveis seguem sendo tomadas a portas fechadas.
“Você não verá, por exemplo, um debate público sobre uma nova tecnologia que torna um transgênico tolerante a cinco herbicidas”, explica o ex-integrante Leonardo Melgarejo. Isso impede que cientistas independentes, ambientalistas e agricultores possam questionar a eficácia e a segurança desse modelo de agricultura.
A justificativa mais comum é a proteção ao chamado segredo comercial — informações consideradas sensíveis por envolverem patentes e tecnologias proprietárias. Por isso, documentos chegam com grandes trechos censurados.
Melgarejo faz uma distinção importante sobre o sigilo na indústria dos transgênicos. Ele admite que certos dados técnicos merecem proteção — como os detalhes sobre a engenharia genética aplicada a um OGM. Ou, como ironiza, “as modificações feitas lá na rebimboca da parafuseta do gene”.

Entretanto, o conceito de sigilo se desfaz em uma zona cinzenta. Informações cruciais são tratadas como confidenciais — muitas vezes sem justificativa convincente. Por exemplo:
- Resultados de testes de impacto ambiental e toxicológico de um novo transgênico podem ser considerados “sigilosos” simplesmente porque a empresa assim solicitou.
- Riscos potenciais de novas tecnologias, como sementes tolerantes a múltiplos herbicidas, podem ser debatidos a portas fechadas, sem que a sociedade tenha acesso ao embasamento técnico dessas decisões.
- Relatórios de estudos científicos usados nas deliberações podem ser mantidos sob sigilo, dificultando a contestação ou revisão por especialistas independentes.
Quando uma solicitação desse tipo é aceita, a reunião entra em modo restrito. É a chamada “sessão fechada” ou “sessão reservada”. O público é retirado do ambiente, seja ele uma sala física ou uma videoconferência. Jornalistas, pesquisadores independentes e representantes da sociedade civil precisam sair.
A partir daí, apenas os membros da CTNBio e os diretamente envolvidos no processo permanecem na discussão. A reunião pode até ser retomada em modo público depois, mas os detalhes da deliberação sigilosa não são divulgados.
Decisões políticas
Uma das raras investidas para conter os poderes da CTNBio chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF) em 2005. Na ocasião, o então procurador-geral da República, Cláudio Fonteles, entrou com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade contra mais de 20 dispositivos da recém-sancionada Lei de Biossegurança — todos voltados ao funcionamento do órgão.
Entre os pontos contestados, estava a transferência exclusiva à comissão da atribuição de liberar comercialmente OGMs sem exigência de avaliação por órgãos ambientais ou sanitários.
Inconstitucionalidade
O Princípio da Precaução, presente na Lei de Biossegurança, na Constituição Federal, e em protocolos internacionais, como a Convenção da Diversidade Biológica (Rio-92) e o Protocolo de Cartagena, estabelece que, diante de riscos graves ou irreversíveis à saúde e ao meio ambiente, devem ser tomadas medidas preventivas, mesmo sem prova absoluta de dano. A CTNBio tem sido criticada por priorizar a liberação de OGMs sem o devido escrutínio. Os riscos potenciais são ignorados.
Ao longo dos anos, a ADI mobilizou diferentes setores. Em setembro de 2021, ex-presidentes da CTNBio publicaram o artigo “O STF julga um atentado à ciência brasileira” no site Poder360. O texto defendeu a comissão, tratou a ação como uma ameaça ao progresso científico e sustentou que os membros da comissão são “os melhores cientistas que se pode reunir”. Para os autores, questionar a CTNBio seria deslegitimar a ciência e frear o avanço da biotecnologia no país.
A retórica também buscou reforçar a ideia de consenso e segurança, afirmando que “não há registro de qualquer problema para a saúde humana ou para o meio ambiente” relacionado aos transgênicos — ignorando o fato de que a ausência de registros não significa ausência de riscos, especialmente num contexto em que a fiscalização é limitada e os estudos independentes têm pouco peso nas decisões do colegiado.
Em resposta, um grupo de 15 ex-integrantes da CTNBio publicou a nota “Em defesa da ciência, com ética”, contestando a alegação de consenso científico. Eles argumentaram que as opiniões expressas no artigo anterior eram “frágeis, infundadas e enganosas” ao afirmar a segurança dos transgênicos para a saúde e o meio ambiente.
No centro da controvérsia está um conceito pouco conhecido fora dos círculos técnicos, mas decisivo para as liberações de transgênicos no Brasil. Chama-se equivalência substancial. Segundo essa lógica, se um organismo geneticamente modificado apresenta composição semelhante à de uma planta convencional, pode pode ser considerado seguro
Críticos apontam que essa semelhança se apoia em amostras limitadas, repetições escassas e análises estatísticas frágeis. Ainda assim, o critério tem sido usado para autorizar cultivos, inclusive quando há risco de contaminação.
Há também uma contradição. A mesma planta que é considerada equivalente a uma variedade convencional para fins de aprovação regulatória é tratada como um organismo distinto quando se trata de registrar patentes e cobrar royalties.
Após anos de tramitação, o julgamento foi retomado pelo STF. Em agosto de 2023, a maioria dos ministros votou pela validade dos dispositivos impugnados, reafirmando a competência da CTNBio e a dispensa de estudos prévios de impacto ambiental.
“O tribunal referendou dispositivos que violam a Constituição”, interpreta Jaqueline Andrade, assessora jurídica da organização Terra de Direitos, integrante do Grupo de Trabalho Biodiversidade da Articulação Nacional de Agroecologia (GTBio da ANA). “A contaminação das sementes crioulas já começou. Mas como ninguém mede, ninguém vê. E quem deveria acompanhar, simplesmente não acompanha.”