Gigante do cigarro BAT, antiga Souza Cruz, e fábrica paraguaia foram as empresas que mais registraram produtos com aditivos proibidos por norma da Anvisa contestada na Justiça há 13 anos
Fumos de narguilé com sabores doces, como ursinho de goma e chiclete. Ou de bebidas alcoólicas, como corote, melancia atômica e “abacaloco”.
Cigarros com sabores em inglês que remetem a frescor, relaxamento ou gelo, como big chill, mint x, freeze ou fresh double ice.
E todos com aditivos – como adoçantes, saborizantes ou até anestésicos – proibidos para uso no tabaco porque facilitam a primeira tragada de adolescentes e favorecem o vício em nicotina.
Em 2012, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) vetou o registro de fumos com sabor no país. Desde então, uma série de ações judiciais movidas por empresas e entidades do setor garantiram que mais de 937 produtos saborizados fossem cadastrados entre 2014 e 2022 via liminares judiciais. Em 2023, o caso chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF) pela segunda vez. Em 2018, um julgamento sobre o mesmo assunto havia validado a norma da agência, mas sem impedir que novos registros continuassem a ser solicitados à Justiça por meio de liminares.
As maiores beneficiárias do “libera-geral” foram a multinacional de cigarros BAT, antiga Souza Cruz, e uma fábrica paraguaia de fumo para narguilé, a Flavors of Americas (FOA), mostra uma análise do Joio.
Ambas as empresas somam 42% do total de fumígenos com sabor registrados no período, cerca de 393 – 201 para a BAT e 192 para a FOA. Os cálculos foram feitos pela reportagem a partir de uma base de dados de registros na Anvisa disponibilizada pelo epidemiologista André Szklo, do Instituto Nacional do Câncer (Inca).
937
é o número de produtos saborizados liberados
graças a liminares
201
foram pedidos da BAT
192
foram pedidos da FOA
No período, cerca de 65% dos produtos aditivados foram de fumos para narguilé. “Para os adolescentes, o narguilé é um produto até mais consumido e, talvez, uma porta de entrada mais importante para a dependência da nicotina do que o próprio cigarro convencional”, explica Szklo. “Não existe praticamente fumo para narguilé que não seja com aromas e sabores.”
Esses aditivos são usados para mascarar maus odores, gostos desagradáveis e a irritação causada pelo tabaco à garganta e ao pulmão. Um dos principais deles, o mentol, por exemplo, dá “frescor” à fumaça, reforça os efeitos da nicotina no cérebro e age como anestésico nas vias aéreas. Além de atraírem jovens, fumígenos mentolados também são mais difíceis de largar.
Nas mãos do STF
Hoje, há pelo menos 176 fumígenos aditivados com venda autorizada no país.
“Diversas empresas têm a possibilidade de continuar registrando produtos com aditivos proibidos, num contexto de decisões judiciais concedidas a essas empresas em desfavor da Anvisa”, disse a agência por e-mail ao Joio. “Nesses casos, a Anvisa é obrigada a cumprir as decisões judiciais e uma vez que os demais requisitos regulatórios sejam cumpridos, os produtos serão registrados mesmo contendo aditivos”.
Enquanto isso, o Supremo Tribunal Federal ainda avalia se a proibição da Anvisa é constitucional. No momento, o placar está 2×1 a favor da agência com votos do relator do caso, o ministro Dias Toffoli, e do ministro Edson Fachin, que o acompanhou. Já Alexandre de Moraes votou a favor das empresas de cigarro.
O julgamento segue suspenso após um pedido de vistas do ministro Luiz Fux, em fevereiro.
Em 2012, a constitucionalidade da mesma norma da Anvisa já havia sido questionada pela Confederação Nacional da Indústria (CNI). O julgamento só seria concluído em 2018. Na ocasião, o tribunal decidiu que a regra era válida, mas sem lhe conceder “efeito vinculante”, isto é, a obrigação de tribunais inferiores seguirem o mesmo entendimento.
Na prática, isso permitiu que empresas de cigarros e narguilé voltassem a registrar fumos aditivados na base de liminares até que o caso retornasse ao Supremo.
Como na tentativa anterior, na atual, a indústria do tabaco acusa a Anvisa de ter “extrapolado” suas atribuições ao impedir o uso das substâncias. A ação alega que o órgão não poderia proibir produtos fumígenos, apenas fiscalizá-los.
Além disso, a proibição do uso de aditivos violaria a “liberdade do consumidor de escolher o produto que deseja” e fortaleceria o contrabando, segundo o setor.
A ação foi movida pela Sulamericana Tabacos, empresa que hoje é acusada de integrar a Máfia dos Cigarros do Rio de Janeiro. O esquema obrigava o comércio local fluminense a vender somente as marcas ligadas ao crime organizado, segundo investigadores.
O real dono da empresa, segundo a Polícia Federal, seria o bicheiro Adilsinho. A empresa e o contraventor negam. A Sulamericana também já teve seu registro cassado pela Receita por dever mais de R$ 1 bilhão em impostos.
A própria paraguaia FOA, a segunda maior beneficiária da farra de liminares, também atraiu atenção de autoridades brasileiras. A importadora dos produtos da fábrica, a empresa catarinense Elite Trade, já foi fiscalizada por descaminho e publicidade irregular ao vender produtos da fabricante.
Em 2023, uma fiscalização liderada pela Anvisa na sede da importadora em Santa Catarina apreendeu mais de 1,3 milhão de caixas de fumo para narguilé sem registro das marcas Zomo, Nay, e FDC, todas da FOA, além de outros fumígenos da marca Desvall.
No total, mais de R$ 10 milhões em mercadorias ilegais foram apreendidas, além de materiais de propaganda de fumo, o que também é irregular no país. A FOA não respondeu aos e-mails enviados pelo Joio.
Já a BAT disse em nota à reportagem que “todos os produtos fumígenos comercializados pela companhia são registrados e autorizados previamente pela Anvisa”.

Mais fumo com sabor, mais adolescente fumando
O avanço na venda de fumos “aditivados” durante o “liberou geral” de 2014 a 2022 piorou os índices de tabagismo entre os mais jovens, segundo dados oficiais.
É o que mostram números da Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar (PeNSE), que entrevista adolescentes entre 13 e 17 anos. De 2015 a 2019, embora o uso de cigarros entre os jovens tenha permanecido estável, por volta de 6,7%, o de tabaco no geral cresceu de 10,6% para 14,8%.
O predileto? Justamente o narguilé, o campeão de novos produtos aprovados via liminares. Em 2019, 7,8% dos adolescentes fumavam narguilés.
Ao longo da tramitação da atual ação no STF, as empresas de cigarro também afirmaram não haver evidências de que fumígenos com sabores – como cigarros mentolados ou narguilés sabor corote, melancia atômica ou abacaloco – seriam mais viciantes ou que visem adolescentes.
Só que elas existem – e aos montes. Uma pesquisa norte-americana de 2019, por exemplo, analisou dados de mais de 38 mil pessoas para avaliar o impacto de sabores no tabagismo e concluiu que produtos do tipo atraem jovens a experimentarem o fumo e continuarem a consumi-lo.
“Quando eles comparam a primeira experimentação com cigarro com sabor versus o cigarro sem sabor, eles mostram que, ao longo do tempo, quem experimentou um produto saborizado tem um risco maior de se tornar um consumidor regular”, explica Szklo.
Fux tem até o fim de junho para decidir seu voto. Em seguida, o tema voltará à votação no plenário do STF.
Outro lado: o que dizem Anvisa, BAT e FOA
A FOA não respondeu aos e-mails enviados pela reportagem.
Já a Anvisa disse que: Quando uma empresa deseja registrar um produto fumígeno, deve seguir o disposto na RDC nº 896/2024 e outros regulamentos aplicáveis como a RDC nº 838/2023 e a RDC nº 14/2012. Após o protocolo, as petições são analisadas e verifica-se o cumprimento dos requisitos dos regulamentos e as petições podem ser deferidas ou indeferidas. O fumo para narguilé, em geral, contém aditivos flavorizantes proibidos pela RDC nº 14/2012. No entanto, diversas empresas têm a possibilidade de continuar registrando produtos com aditivos proibidos, num contexto de decisões judiciais concedidas a essas empresas em desfavor da Anvisa, e que afastam a aplicação de alguns artigos da RDC 14/2012. Nesses casos, a Anvisa é obrigada a cumprir as decisões judiciais e, uma vez que, os demais requisitos regulatórios sejam cumpridos, os produtos serão registrados mesmo contendo aditivos. Para dar publicidade a essa informação, na lista de produtos com registro válido, disponível em https://www.gov.br/anvisa/pt-br/assuntos/tabaco/consulta-a-registro há a indicação quando se trata de produto registrado em cumprimento a alguma liminar ou decisão judicial.
Por fim, a BAT afirmou que: A BAT Brasil reafirma que atua em total conformidade com a legislação brasileira e segue todas as regulamentações vigentes. Todos os produtos fumígenos comercializados pela companhia são registrados e autorizados previamente pela ANVISA. A BAT Brasil alerta para a grave realidade do mercado ilegal, que é amplamente presente no país e opera com produtos sem qualquer tipo de registro, aumentando o risco sanitário e fiscal e prejudicando a concorrência leal no Brasil.