A maior parte dos fumantes evita ajuda profissional ao tentar deixar o cigarro. E quem busca clínicas privadas ou o SUS pode enfrentar filas, falta de medicamentos e alta evasão
A publicitária Isabela Balconi, 27 anos, fumava desde os 15. Começou no cigarro mentolado e depois partiu para o filtro vermelho, que tem um sabor de tabaco mais intenso. “Era o clássico: eu queria parecer legal, rebelde e fumar fazia parte desse personagem”, explica.
Ao longo dos anos, ela tentou parar algumas vezes. Usou até vape na promessa de reduzir quantos cigarros fumava ao dia, mas não adiantou. Na metade de 2024, a publicitária decidiu buscar o tratamento para tabagismo ofertado pelo SUS, só que não conseguiu ser atendida na unidade de seu bairro, em Porto Alegre.
A cidade gaúcha é a capital mais fumante do país, segundo dados do último Vigitel, de 2023. Na época, por volta de 13,8% dos habitantes de Porto Alegre usavam tabaco, cerca de 186 mil pessoas – a maioria mulheres.
“Eles disseram que eu teria de entrar em uma fila de espera e a consulta só acontecia em horário comercial, o que dificultava para mim porque trabalho”, diz Isabela. Em seguida, ela tentou em outro posto. “Lá foi a mesma coisa: disseram que eu teria de entrar em uma fila de espera de mais ou menos seis meses”, lembra.
A alternativa foi ir à psiquiatra de um consultório privado. Funcionou. Desde janeiro, a publicitária está sem o cigarro. “Meu fôlego, pele e capacidade olfativa e de sentir gostos mudaram”, celebra. Mas a tentação às vezes retorna. “Tem dias que a vontade [de fumar] volta e me agarro em resistir só cinco minutos, depois mais cinco, até passar; é uma intermitência”, diz.
A persistência de Isabela em buscar ajuda médica para deixar o cigarro, no entanto, é uma exceção. De acordo com os últimos dados do IBGE, de 2019, quase 9,4 milhões (46%) dos mais de 20,4 milhões de fumantes do Brasil tentaram parar ao longo daquele ano – um número próximo a 3 vezes a população do Uruguai em gente querendo largar o fumo. Contudo, apenas 1,6 milhão buscaram um profissional de saúde para isso.

E nem todos têm condições de buscar consultórios ou planos privados. Quase 50% dos fumantes brasileiros nunca completou o ensino fundamental, enquanto mais da metade mora em um lar em que o rendimento per capita da família é menor que um salário mínimo ao mês, segundo o mesmo IBGE.
No SUS, o tratamento padrão contra tabagismo é feito por meio de grupos de apoio. O fumante chega no posto, tem uma consulta de entrada e é designado para uma turma, que deve passar por quatro sessões de palestras e orientações. Só que, a depender da unidade de saúde, no meio do caminho há filas – tanto para a consulta inicial, como para entrar em um grupo. E muitas vezes essas sessões são marcadas em horário comercial, o que dificulta a adesão.
SUS oferta grupos de apoio
A cozinheira Márcia Vasconcellos, 58 anos, por exemplo, começou a fumar aos 12 junto com a irmã mais velha, escondida dos pais, no fim dos anos 70. Mais de quatro décadas depois, ela teme morrer se não deixar o tabaco de vez.
“Eu tô com enfisema pulmonar, as minhas veias entupidas, posso ter um derrame cerebral e acho que vou ter que fazer aquela ponte de safena na perna esquerda”, explicou. Ainda assim, ela fuma cerca de uma carteira ao dia – ou 20 cigarros.
Por isso, ela decidiu buscar ajuda no SUS em uma unidade de saúde na zona norte de Porto Alegre. Na unidade visitada por Márcia, o atendimento ao fumante é feito em grupos de apoio às sextas-feiras à tarde. No dia em que ela foi ao posto, haveria uma turma de dois fumantes, mas ambos faltaram. Acabou dando sorte – a ausência foi a deixa para que ela fizesse sua consulta inicial, sem passar por filas.
Ela explica que “sempre” teve vontade de parar, mas que sua ansiedade e depressão contribuem para que ela continue. Mãe de cinco filhos, dois deles morreram em acidentes. “Eu acho que o cigarro me acalma, sabe? Mas na verdade ele não me acalma, ele só me faz mal”, diz. “É uma companhia porque eu me sinto muito sozinha, eu moro sozinha, então eu me paro a fumar porque acho que aquilo tá me acalmando, mas não tá”.
O Joio acompanhou a consulta inicial de Márcia na unidade que ela visitou, feita pela cirurgiã dentista Mérope Castro, a profissional responsável pelas turmas de fumantes no local. De início, é feito o Teste de Fagerström, um questionário com seis perguntas usado para medir o nível de dependência em nicotina de um fumante. Depois, é definida qual será a medicação usada e, muitas vezes, há uma fila de espera até novos grupos abrirem vagas.
A depender do resultado do teste, o SUS tem três opções a fornecer: o uso da bupropiona, um antidepressivo que ajuda a cortar a vontade de fumar e a fissura pelo fumo, adesivos e gomas de nicotina ou uma combinação de ambos. A reposição via gomas e adesivos é feita para combater os sintomas da abstinência em quem é dependente físico da droga. Suspender o cigarro de repente e sem orientação pode levar a crises de ansiedade, irritabilidade, insônia, tremores, entre outros sintomas desagradáveis, devido à abstinência.
Bupropiona e adesivos
As mesmas opções também são fornecidas em clínicas privadas, com a diferença que o acompanhamento costuma ser individual, marcado ao gosto do cliente, e não em grupos de apoio. Isabela, por exemplo, parou de fumar com uso da bupropiona, mas agora teme o “desmame” do remédio. “Estou perto do fim do tratamento e tenho me perguntado se tô disposta a abandoná-la [a droga] porque imagino que vá ser difícil estar sem o que me ajudou.”


Foto: Isabelle Rieger
Na época, ela não usou adesivos de nicotina porque o medicamento estava em falta nas farmácias, uma queixa comum entre médicos e pacientes. No Brasil, só há três marcas de gomas ou adesivos de nicotina disponíveis no mercado – duas registradas em nome de importadoras e apenas uma em nome de uma farmacêutica com sede por aqui. Ao longo de 2024, o país enfrentou um desabastecimento do remédio. No SUS, o Ministério da Saúde disse à reportagem que os estoques desses remédios estão regulares.
A falta de outras opções para tratar tabagistas – mesmo no setor privado – incomoda alguns especialistas. Alguns deles temem que os remédios disponíveis hoje podem ser insuficientes para conter a dependência causada por novos produtos, como vapes ou sachês de nicotina, que podem levar a uma dependência ainda maior em comparação aos cigarros convencionais.
“O médico que quer tratar tabagistas no Brasil, por um lado enfrenta cigarros eletrônicos com alta potência, quantidades de nicotina extremamente altas e, por outro, uma fraqueza de insumos porque o tratamento de tabagismo no SUS é feito a conta-gotas”, diz o médico pneumologista Paulo Corrêa, professor da
Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop). “Tem uma coisa comum que a gente faz, que é partir o adesivo [de nicotina] no meio para poder durar mais, porque se chegar um paciente mais dependente, você tem um restinho.”
Hoje, a Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda quatro remédios para uso no tratamento de tabagistas. Além de bupropiona e gomas ou adesivos, as duas outras opções – vareniclina e citisina – sequer estão disponíveis no Brasil. Enquanto a citisina não tem registro junto à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), um requisito para ser comercializada no país, a vareniclina até está cadastrada em nome da farmacêutica Pfizer, mas não é vendida por aqui desde 2021. O Joio perguntou à farmacêutica o motivo, mas a empresa não respondeu.
Com isso, na prática, enquanto a indústria do tabaco se reinventa com novos produtos – que contém quantidades cada vez maiores de nicotina – os tratamentos disponíveis podem ficar defasados. As sessões de tratamento para fumantes visitadas pela reportagem, por exemplo, usam uma fórmula semelhante há mais de 20 anos. Os quatro encontros seguem o determinado por cartilhas produzidas pelo Instituto Nacional do Câncer (Inca) mais de 20 anos atrás, em 2004.
30 tentativas até parar de fumar
Parar de fumar é uma saga ingrata. Na média, fumantes tentam deixar o tabaco pelo menos 30 vezes antes de finalmente conseguirem, estimam pesquisadores. Já o Inca, em seus relatórios, relata que por volta de 80% dos tabagistas querem abandonar o vício, mas a cada ano só 3% têm sucesso.
“É muito difícil: tu quer, tem vontade, teu meio te exige, mas tu não consegue te livrar daquilo”, diz a cirurgiã dentista Mérope Castro, que coordena grupos que tratam tabagismo no SUS da capital gaúcha. “As pessoas se sentem incapazes.”

Só em 2024, em Porto Alegre, por exemplo, 4.737 tabagistas acessaram a rede pública em busca de tratamento – destes, 1.016 pararam com o fumo, ou 21%, informou a Secretaria de Saúde do município ao Joio. Comparando o índice aos números do Vigitel, isso significa que o SUS ajudou menos de 1% dos fumantes da capital gaúcha.
A média da cidade é inferior à do próprio Rio Grande do Sul – segundo estado mais tabagista do país, atrás somente do Mato Grosso do Sul, segundo pesquisa do IBGE de 2019. No estado inteiro, 23,9 mil buscaram o SUS em 2024 e 8,5 mil, cerca de 35% do total, tiveram sucesso no tratamento, segundo a Secretaria estadual de Saúde relatou à reportagem.
Outros estados, no entanto, têm números melhores. É o caso de São Paulo. “Entre os anos de 2017 e 2024, o programa estadual de controle do tabagismo acompanhou mais de 1,2 milhão de pacientes. Durante os três meses de acompanhamento, cerca de 76% pararam de fumar”, disse ao Joio a Secretaria de Saúde paulista. O estado também oferta jogos e informações sobre como parar de fumar no aplicativo do Poupatempo, que centraliza serviços digitais estaduais. “O quiz avalia a dependência à nicotina e indica a rede de tratamento mais próxima”, informou a pasta.
A Organização Mundial da Saúde trata o uso do tabaco como uma epidemia global. Só que, neste caso, sua causa não são vírus ou bactérias, e sim a indústria do cigarro, que propaga a dependência da nicotina e lucra com ela. Só para comparar: entre 2020 e 2024, a pandemia da covid-19 vitimou um total de 7 milhões de pessoas. Já a epidemia de tabagismo mata 8,3 milhões ao ano.
Qualquer pessoa que já tenha fumado mais de 100 cigarros ao longo da vida e ainda usa tabaco, mesmo que de vez em quando, é considerada uma fumante regular pela OMS.
“Fumar é uma doença”, resume o médico da família Ricardo Melnick, que também trata tabagistas na rede pública de Porto Alegre. “Em alguns pacientes, predomina a dependência química, em outros, a questão comportamental [o hábito, a rotina de fumar], mas é algo complexo, em que soluções mágicas não ajudam”, diz.
O que disse o Ministério da Saúde:
O Programa Nacional de Controle do Tabagismo (PNCT) garante atendimento integral e gratuito, no SUS, a usuários de produtos de tabaco e dependentes de nicotina. O programa também incentiva estados, municípios e o Distrito Federal a adotarem ações para apoiar a cessação do tabagismo. As informações sobre o tratamento são públicas e estão disponíveis em: https://www.gov.br/inca/pt-br/assuntos/gestor-e-profissional-de-saude/programa-nacional-de-controle-do-tabagismo.
Com base nas demandas de tratamento apresentadas pelas Secretarias Estaduais de Saúde e pelo Distrito Federal, o Ministério da Saúde adquire e distribui regularmente os medicamentos destinados ao tratamento do tabagismo, como o adesivo transdérmico de nicotina, a goma de mascar de nicotina e o cloridrato de bupropiona. Todos os estoques desses insumos estão regulares. A distribuição aos municípios é de responsabilidade da gestão estadual.
Em relação ao medicamento citisiniclina, não houve, até o momento, solicitação de avaliação da tecnologia pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec). No caso da vareniclina, em 2019, a Comissão avaliou e deu parecer desfavorável à sua incorporação. Para que uma tecnologia em saúde seja incorporada ao SUS, é necessário o registro na Anvisa e posterior análise pela Conitec, que considera evidências científicas sobre eficácia, segurança, custo-benefício e impacto orçamentário.
O Ministério da Saúde acompanha de forma contínua os estudos e as evidências científicas sobre novos tratamentos e estratégias de controle do tabagismo, com o objetivo de garantir atendimento e assistência adequados aos usuários do SUS que buscam parar de fumar.