Criados pelo próprio prefeito do Rio de Janeiro, centros de referência fechados por Crivella não foram reativados. Pesquisadora critica falta de planejamento para oferta do genérico usado para emagrecimento
O Rio de Janeiro pode se tornar a primeira cidade do país a oferecer semaglutida, princípio ativo do Ozempic, diretamente nas clínicas da família e nos postos de saúde municipais, fora de um serviço especializado para o tratamento da obesidade.
O tema foi trazido a público por Eduardo Paes durante a campanha pela reeleição, em 2024, e agora é tratado com prioridade pela gestão do pré-candidato ao governo do estado. A medida, no entanto, é vista com cautela por pesquisadores e especialistas.
“A nossa previsão é começar no ano de 2026. A gente espera já no primeiro semestre iniciar com a introdução da medicação na nossa relação de medicamentos”, informou ao Joio o secretário Municipal de Saúde, Daniel Soranz.
O município espera disponibilizar a versão genérica da semaglutida após a quebra da patente, prevista para março de 2026. A farmacêutica Novo Nordisk, no entanto, move uma ação judicial para tentar prorrogar seu direito exclusivo de fabricar e comercializar o Ozempic.
O anúncio de que o Rio deverá distribuir o medicamento gratuitamente corresponde ao estilo de Eduardo Paes, reconhecido por sua habilidade em fazer marketing e também por uma certa incontinência verbal.
“O Rio vai ser uma cidade que não vai ter mais gordinho, todo mundo vai tomar Ozempic nas clínicas da família”, disparou, em sua campanha à reeleição, depois de revelar ter perdido 30 quilos com o Ozempic, a caneta injetável criada para o controle do diabetes, mas que vem sendo usada para emagrecer.
Foi criticado pelo tom gordofóbico da frase. Em sua posse, tratou de se corrigir. “Isso é muito importante. As pessoas falam sobre isso de maneira jocosa, mas é uma política de saúde pública contra a obesidade, que é um problema grave”, disse Paes, logo após assinar o decreto de criando um grupo de trabalho sobre o tema.

Paes soma-se a uma lista de autoridades públicas, entre deputados, senadores, governadores e ministros do Supremo, que estão usando as canetas – alguns, inclusive, para fins estéticos. Nos últimos meses, pipocaram projetos de lei nacionais e regionais sugerindo a oferta gratuita desses medicamentos, nos mais diferentes moldes.
No Rio, a preocupação é justificada: um a cada quatro moradores da cidade vive com obesidade. O indicador saltou de 16,9% para 26,2% entre 2009 e 2023, segundo a pesquisa Vigitel, do Ministério da Saúde. A capital fluminense aparece em oitavo lugar entre todas as capitais do Brasil, com um resultado acima da média nacional. Ao longo desses 14 anos, Paes foi prefeito por onze.
A ideia é oferecer a semaglutida nas clínicas da família para pessoas com IMC igual ou superior a 40, o chamado grau 3 de obesidade, e que tenham também o diagnóstico de diabetes. “Os pacientes que tiverem um IMC maior serão prioridade nessa fila. E [seguiremos] gradativamente até que a gente consiga avançar para todos com IMC acima de 40”, explicou Soranz.
“A prefeitura do Rio gasta R$ 130 milhões por ano com problemas advindos da obesidade. Isso impacta na expectativa de vida média do carioca em pelo menos quatro anos. É uma situação extremamente preocupante”, justifica Soranz.
O Joio pediu à secretaria o detalhamento dos gastos mencionados durante a entrevista, mas não obteve resposta até o fechamento desta reportagem.
A prevenção e o controle da obesidade, no entanto, não apareceram nos planos de governo dos dois mandatos mais recentes da gestão Paes. No documento apresentado nas eleições de 2024, o tema surgiu de forma indireta, com a menção à “implantação de novos projetos voltados para garantir a segurança alimentar dos cariocas”.
Mas o histórico da capital fluminense tem sido o de idas e vindas nas políticas de segurança alimentar e nutricional, inclusive durante os mandatos de Paes, a despeito do papel de referência que o antigo distrito federal já exerceu no passado, como veremos adiante.

Parecer desfavorável no SUS
Semaglutida (Ozempic e Wegovy), liraglutida (Saxenda) e tirzepatida (Monjauro) são chamados de análogos de GLP-1, hormônios que o nosso próprio corpo produz após o consumo de alimentos. Desenvolvidos originalmente para o controle do diabetes, agem em receptores do sistema nervoso central para controlar o apetite e retardar o esvaziamento do estômago, fazendo com que a pessoa coma menos e perca peso.
Em alguns casos, pode levar a perda de até 20% do peso corporal, resultado que nenhum outro fármaco havia alcançado até então. Isso explica o entusiasmo em torno do efeito que esses medicamentos podem ter diante de projeções de crescimento alarmantes da obesidade no Brasil e no mundo.
Ainda não se sabe quanto custará a versão genérica da liraglutida, que já está sendo produzida no Brasil, inclusive com investimento do BNDES.
A incorporação da liraglutida e da semaglutida está sendo avaliada pelo Ministério da Saúde, atendendo a pedido da Novo Nordisk e da Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e Síndrome Metabólica (Abeso), entidade médica que historicamente defende a abordagem medicamentosa.
No caso da liraglutida, é a segunda vez que essa avaliação acontece.
A Novo Nordisk já havia solicitado a incorporação, quando ainda era detentora da exclusividade em sua fabricação. Em dezembro de 2023, uma reportagem exclusiva do Joio mostrou que o lobby pela oferta da liraglutida no SUS mobilizou até mesmo a Embaixada da Dinamarca.
Naquele ano, Soranz exercia mandato de deputado federal e esteve entre os parlamentares convidados a conhecer a sede da Novo Nordisk em Copenhague, com custos pagos pela representação diplomática do país europeu.
A oferta deste medicamento representaria um gasto de quase R$ 13 bilhões aos cofres públicos em cinco anos, quase vinte vezes mais que o orçamento das ações de Alimentação e Nutrição para a Saúde do governo federal ao longo de uma década.
A queda da patente e a esperada redução de custos a partir da fabricação de genéricos poderiam mudar o cenário para uma eventual decisão de incorporar esses fármacos no SUS.
Muita sedução, poucas certezas
Responsável pela análise, a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec) desaconselhou por unanimidade a incorporação de ambos os medicamentos, em reunião realizada no último dia 8.
Os integrantes da comissão reconheceram a necessidade de ter uma alternativa medicamentosa entre as opções de tratamento para a obesidade no SUS, mas consideraram ser necessário um recorte mais definido para a indicação desses fármacos.
No caso da semaglutida, o pedido de incorporação foi feito para pacientes com obesidade graus dois e três, idade acima de 45 anos e histórico de problemas cardiovasculares.
Qual o percentual de perda de peso mínimo e da manutenção dessa perda faria valer a pena a inclusão desses medicamentos no SUS? Não é uma pergunta simples de responder. “Temos muita sedução e poucas certezas”, resumiu um dos participantes da reunião.
O tema ainda deverá passar por consulta popular antes de uma decisão definitiva.
Os relatórios com o detalhamento das projeções devem ser divulgados ao final do processo de análise.
Algumas cidades brasileiras já utilizam a liraglutida no tratamento da obesidade, mas seguem protocolos de diretrizes clínicas e oferecem atendimento especializado. Na maior parte dos casos, administrados no âmbito da atenção secundária de saúde e dentro de um programa mais amplo de abordagem.
Na própria cidade do Rio isso já acontece.
No Instituto Estadual de Diabetes e Endocrinologia do Rio de Janeiro (Iede), a liraglutida é prescrita para pacientes com obesidade grave mediante um protocolo de acompanhamento multidisciplinar que inclui endocrinologista, psicoterapia e orientação nutricional.
Na estrutura do SUS, o atendimento a doenças e procedimentos mais complexos (como a cirurgia bariátrica, por exemplo) ocorre na atenção secundária de saúde, vinculada na grande maioria dos casos às secretarias estaduais. Isso não impede que um ou mais municípios criem uma estrutura para lidar com esses casos.
Nos planos do município, a semaglutida será prescrita nas unidades de atenção primária, por médicos não necessariamente especializados no tema e pela equipe de saúde da família. A Secretaria de Saúde não soube estimar quantos pacientes poderiam se beneficiar da medida e informou que esses dados ainda estão sendo levantados pelo grupo de trabalho criado para este fim.
Segundo dados do Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional, o Sisvan, o município teve 46.930 pacientes com obesidade grau 3 (IMC acima de 40) atendidos na atenção primária de saúde em 2023.
“Fica muito claro que o objetivo é ofertar medicamento e ponto. Essa ação não está preocupada com o cuidado das pessoas com obesidade. Porque, se estivesse, faria parte de um outro planejamento, que é organizar a linha de cuidado, avaliar quem são as pessoas que vão receber esse paciente, quais as ações e por quais profissionais elas vão passar”, critica Erika Reis, professora e pesquisadora da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP).
Especialista em saúde pública, Erika coordenou os Centros de Referência em Obesidade (CRO), uma iniciativa municipal que, coincidentemente, também havia sido fruto de uma promessa feita durante a primeira campanha eleitoral de Eduardo Paes, em 2008.
Entre 2011 e 2012, foram inaugurados três CROs. Esses centros recebiam pacientes encaminhados da atenção primária e tornaram-se referência para o atendimento. Foram esvaziados gradativamente e extintos de forma definitiva em 2020, na gestão de Marcelo Crivella, mesmo sob protesto dos pacientes e profissionais de saúde.
Houve dificuldade diante da falta de articulação com os demais atores da rede de atenção à saúde.

“Foi muito importante para a vida das pessoas enquanto elas estavam fazendo o tratamento. Só que a gente não tinha nenhuma integração com a rede, a gente ofertava uma atividade isolada. A pessoa ficava bem enquanto estava lá: tinha uma melhora da qualidade de vida, da saúde, a gente percebia efeitos significativos na vida dessas pessoas, mas a gente não conseguia encaminhar para um especialista ou para a cirurgia bariátrica”, relembra Erika, que estudou a experiência em sua pesquisa no doutorado.
Cada CRO contava com profissional de educação física, enfermeiro, psicólogo, nutricionista e endocrinologista. Os pacientes recebiam orientações práticas sobre hábitos alimentares e atividade física e participavam de atividades psicoterapêuticas.
Desmonte deixou pacientes sem atendimento
As canetas parecem, de fato, representar uma esperança para quem vive com obesidade e não responde às abordagens com outros medicamentos e mudanças no estilo de vida.
Não há dúvida da eficácia na perda de peso e em diversos benefícios decorrentes do emagrecimento, mas ainda sobram incertezas quanto aos efeitos de longo prazo no uso dessas substâncias.
Existe, também, a preocupação de que a eficácia na perda de peso naturalize e estimule o consumo de uma alimentação pouco ou nada saudável.
Além disso, pode deixar de lado a necessidade de políticas públicas mais abrangentes para garantir o acesso a uma alimentação de qualidade. Na cidade do Rio de Janeiro, por exemplo, cerca de 770 mil pessoas enfrentam dificuldade de acesso a alimentos saudáveis e oferta facilitada a produtos ultraprocessados, os chamados desertos e pântanos alimentares – os dados são do Ministério do Desenvolvimento Social.
A mera medicalização, portanto, seria uma maneira simplista de lidar com uma condição complexa, multifatorial e com mecanismos ainda desconhecidos do ponto de vista clínico.
O entusiasmo observado em torno desses medicamentos pode bater de frente com a realidade concreta da população.
“Eu fazia caminhada todos os dias. Dois, três quilômetros todo santo dia. Mas, como aqui é comunidade, tem hora que não dá. Sair cedo, quatro e meia, cinco horas da manhã pra fazer caminhada não dava mais. A gente parou”, lamenta Magda Cavalcanti da Silva, moradora do Complexo da Penha, na Zona Norte do Rio, e ex-paciente do CRO.
Desde que passou a engordar, Magda vive uma luta constante contra o próprio metabolismo, mesmo após mudar radicalmente hábitos alimentares, deixar de consumir bebidas alcoólicas, parar de fumar e exercitar-se regularmente.
“Sou muito difícil de perder peso. Sempre malhei muito, sempre caminhei, sempre fiz muito movimento. Fazia trilha, ainda faço. Comecei a engordar depois dos 30 anos. Até então, eu pesava 60 quilos”, conta Magda.
Dos tempos do CRO, ela recorda com saudade das aulas de culinária com a nutricionista, da programação de atividades físicas e do vínculo criado com os colegas, com quem mantém contato até hoje. Magda buscou atendimento especializado após trilhar um caminho comum a muitas pessoas que vivem com obesidade. Teve efeito rebote com alguns medicamentos, perdeu tempo e dinheiro. Hoje faz acompanhamento com nutricionista e se exercita em casa.

A formação de vínculos, a humanização do atendimento e o compartilhamento de temas comuns que vão além da saúde clínica aparecem no relato de profissionais de saúde e pacientes como um diferencial da experiência, reconhecida na época como exemplar pelo Ministério da Saúde.
“A gente chegou a fazer abaixo-assinado, vídeo, passeata na rua. A maioria dos que se mobilizaram na época faleceu. A gente lutou muito, lutamos pra caramba”, recorda Maria Antonia*, que também foi paciente do CRO e fez a cirurgia bariátrica, mas lida hoje com o reganho de peso e com complicações gástricas. “O CRO trazia uma confiança, um aconchego, era uma família, mesmo. Fazíamos festas, tinha amigo oculto. Havia pessoas que nunca tinham ido à praia ou à Quinta da Boa Vista.”
O fim do CRO ocorreu em meio ao desmonte do Instituto de Nutrição Anne Dias, área técnica responsável pela formação de profissionais e pelo planejamento de políticas públicas. “Esse instituto tinha muita parceria com as universidades, ele coordenava toda a área de alimentação e nutrição e tinha projetos que eram referência no Brasil. Quando acaba, a área de alimentação e nutrição fica meio perdida. E foi ao mesmo tempo que o CRO acabou. Quando você tira o setor que fazia a coordenação desses projetos, desses programas que vinham do governo federal e outros também no âmbito municipal, os programas acabam ficando um pouco órfãos”, conta a professora Erika Reis.
Segundo a Secretaria Municipal de Saúde, não está nos planos da atual gestão reativar o modelo dos CROs.
Oferecer tratamento medicamentoso nas clínicas teria como objetivo capilarizar e aproximar o atendimento, chegando em um número maior de pessoas. “A decisão foi ter isso próximo ao usuário. Todas as clínicas da família têm um grupo grande de pessoas com sobrepeso e pessoas obesas”, explicou Daniel Soranz.
Nem todos terão atendimento especializado, inclusive nutricional, o que chama atenção diante dos efeitos colaterais e de consequências que o uso prolongado da semaglutida pode trazer para os usuários, como perda de massa muscular, desidratação e, em alguns casos, desnutrição.
“A pessoa passa pelo atendimento, pega o medicamento e toma. E depois, como é que ela fica? Ela sabe qual vai ser o itinerário terapêutico dela? Os profissionais que vão ofertar sabem disso? Vou oferecer medicamento por quanto tempo? Depois de tanto tempo, qual é o próximo passo? Quando eu organizo uma linha de cuidado, isso tudo está descrito. E, se isso não acontece, até os profissionais ficam sem saber quais são as etapas desse processo de cuidado”, critica Erika.
A Secretaria de Saúde rebateu as críticas. Em nota enviada após a entrevista do secretário, informou que “as unidades contam com equipes de saúde da família, que realizam o acompanhamento do paciente ao longo do tempo, e também com as equipes e-Multi, compostas por profissionais como nutricionistas, assistentes sociais, educadores físicos, fisioterapeutas, fonoaudiólogas e psicólogos, que apoiam as equipes de saúde da família nos serviços de saúde realizados nos territórios. O município do Rio tem, por exemplo, 114 nutricionistas a serviço da rede de Atenção Primária (APS).”
Maria Antônia, que também é profissional de saúde e trabalha em uma Clínica da Família, conta que, embora haja médicos e especialistas, eles não dão conta da demanda. “Aqui tem nutricionista. Ela cria o grupo, mas precisa ser agendado. É um profissional pra clínica inteira. São 14 equipes, cada uma com três mil cadastrados. Não dá pra atender a todos”.
* optamos por usar um nome fictício para proteger a entrevistada de uma eventual retaliação