Movimento popular, entidades e assessoria jurídica que atuam na região denunciam perseguição política; manifestação reivindica liberdade para os detidos e regularização fundiária
Na última segunda-feira (19), as comunidades de fundo e fecho de pasto Brejo Verde e Aparecida do Oeste, localizadas no município de Correntina, no Oeste da Bahia, amanheceram na presença de forças de segurança. Segundo moradores, os agentes desembarcaram de oito viaturas das polícias civil e militar e arrombaram casas sem apresentar mandado de busca ou explicar o que procuravam.
A operação aconteceu três dias depois da prisão de dois moradores da comunidade Brejo Verde. Na sexta-feira (16), Solange Moreira Barreto e Silva, agente comunitária de saúde e militante do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), e seu esposo, Vanderlei Moreira e Silva, foram surpreendidos pela Polícia Federal no aeroporto do Rio de Janeiro, durante viagem planejada desde 2024 a passeio.
A prisão foi determinada pelo juiz Thiago Borges Rodrigues, da Vara de Jurisdição Plena da comarca de Coribe, do Tribunal de Justiça da Bahia. Há outros quatro mandados de prisão expedidos em nome de trabalhadores da mesma região, cujas identidades não foram reveladas.
A advogada do casal, Ana Paula Moreira Caitano, só teve acesso ao processo de Solange e Vanderlei no fim da segunda-feira (19). Por esse motivo, a audiência de custódia aconteceu sem que os representantes legais dos acusados, na ocasião a Defensoria Pública do Rio de Janeiro e advogadas do MAB, tivessem acesso aos autos – o que configura violação do direito à ampla defesa, denuncia uma nota assinada por sete organizações da sociedade civil que atuam na região.
Procurada pela reportagem, a Defensoria Pública do RJ informou que a audiência de custódia sequer estava pautada, mas foi realizada na tarde da própria segunda-feira (19), após solicitação do órgão. Ainda de acordo com a Defensoria fluminense, há uma articulação junto ao sistema penitenciário para que Solange e Vanderlei sejam transferidos para a Bahia.
“É preocupante a audiência ter sido realizada sem que os representantes legais soubessem a natureza das acusações. Eles [Solange e Vanderlei] estão sendo acusados sem terem conhecimento dos fatos. O mandado não diz onde, como, quem ou [traz] qualquer elemento probatório”, diz Juliana de Athayde, da Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais (AATR), entidade baiana que atua há décadas defendendo camponeses desses territórios.
“A região é marcada por um histórico conflito fundiário. Essas prisões são políticas, ocorridas no seio desses conflitos”, complementa.
Além da AATR e do MAB, a Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares (Renap) também presta assessoria jurídica no caso.
O Tribunal de Justiça da Bahia foi procurado pela reportagem, mas se limitou a dizer que o processo corre em segredo de justiça.
Ainda assim, uma nota emitida pela assessoria de comunicação da Polícia Civil da Bahia foi publicada no site do governo do estado. O texto divulga a operação realizada na região de Correntina e as prisões no Rio de Janeiro e informa que investiga os crimes de tentativa de homicídio, associação criminosa, dano qualificado, furto qualificado, esbulho possessório e porte ilegal de arma de fogo. Além disso, divulga as iniciais dos nomes dos acusados.
“O inquérito encontra-se em fase de conclusão, e diligências continuam sendo realizadas para garantir a responsabilização de todos os envolvidos”, anuncia a nota.
Segundo a Polícia Civil, a investigação teve início em 5 de março, quando “uma família foi surpreendida por cerca de 40 pessoas armadas ao chegar à Fazenda Vira Saia, na zona rural de Jaborandi”, município baiano vizinho à Correntina.
A nota continua: “O grupo invadiu a propriedade, danificou veículos, agrediu fisicamente as vítimas e incendiou uma motocicleta. Também foi registrada a subtração de uma espingarda calibre 12. Parte dos autores foi identificada como integrante de uma associação local”.
A reportagem teve acesso a informações processuais do mandado de prisão, que afirma que o casal teria cometido homicídio qualificado.
Em entrevista à reportagem, a advogada de Solange e Vanderlei explicou que o mandado de prisão foi a única fonte de informação fornecida até a liberação dos autos. No processo consta que o casal está sendo acusado de tentar matar Pedro de Castro Silva. Ela afirma que não há qualquer prova do suposto crime, conforme constatou laudo pericial e exames realizados em Pedro.
“Nos exames de corpo de delito e nos relatos das vítimas não têm sequer lesão leve. Não teve lesão corporal”, afirma. “Solange é funcionária pública, é agente comunitária de saúde. Eu acredito que eles [a polícia] se utilizaram de fatos inverídicos para convencer o juiz e chancelar essa ilegalidade. É uma aberração jurídica”, sustenta.
Segundo Ana Paula, os acusados permaneceram até o início da semana em uma casa de custódia e Vanderlei só conseguiu tomar banho e trocar de roupa três dias depois da prisão. Ambos foram alocados em diferentes unidades do sistema prisional do Rio, frequentemente alvo de relatórios e denúncias de superlotação, insalubridade e precariedade de suas estruturas.
“Toda a comunidade e a família estão apavoradas de imaginar essas pessoas simples, de uma região onde todo mundo se conhece, [estão] presos em lugares como esses – e suscetíveis a qualquer tipo de violência”, conta a advogada..
A defesa entrou com um pedido de revogação de prisão, o que inclui as demais pessoas com mandados de prisão expedidos. No caso da negativa do magistrado, a providência será fazer um pedido de habeas corpus no Tribunal de Justiça.
Panela de pressão
As prisões e a operação policial são o ápice de uma série de acontecimentos que vêm afetando as comunidades tradicionais da região na última semana.
Na madrugada do dia 16 de maio, um rancho de uma área de uso coletivo da comunidade Brejo Verde foi destruído. Em outro fecho, conhecido como Entre Morros, foram abertas estradas por seguranças armados, à revelia da comunidade.
Os moradores foram impedidos de manejar o gado, uma das atividades principais do modo de vida das comunidades de fundo e fecho de pasto, reconhecidas como tradicionais pela Constituição estadual da Bahia.

Moradores e entidades da sociedade civil que atuam na região suspeitam que a recente onda de terror nos fechos seja um desdobramento da prisão do sargento reformado da Polícia Militar Erlani Gonçalves Santos, no início de maio. Ele foi alvo da Operação Terra Justa, junto com um auxiliar próximo, o vigilante José Carlos Alves dos Santos. De acordo com o Ministério Público da Bahia, ambos foram denunciados por crime de milícia privada.
“O grupo agia por meio de empresa de fachada com registro de segurança privada – sem autorização legal da Polícia Federal – para prestar serviços a grandes fazendeiros da região, praticando ameaças, lesões corporais e grilagem de terras contra comunidades tradicionais de fundo e fecho de pasto, expulsando famílias posseiras e povos tradicionais de suas terras”, informa o site do MP.
“Cabo Erlani”, como é conhecido, atua na região há décadas como empresário da área de segurança privada, além de se apresentar como pastor, conforme revelou o Joio.
“É um conflito que não começou hoje. As famílias têm enfrentado pistoleiros armados para defender seus territórios. É difícil viver sob ameaça e não fazer a luta. Sabemos que, se parar, a gente é expulso. Mas desconhecemos as coisas que a Justiça alega”, diz um representante da coordenação nacional do MAB que preferiu não se identificar.
“É uma prisão política para desestabilizar a luta dos fecheiros e camponeses da região. Mas não vamos abaixar a cabeça, a luta vai continuar”, completa.
Um ato político foi realizado ontem pela manhã, com concentração em frente ao Fórum de Coribe. Sob o lema “Lutar não é crime”, os manifestantes prestaram solidariedade à Solange e Vanderlei, além de denunciar as perseguições às comunidades tradicionais e reivindicar que o governo da Bahia tome medidas para dar fim ao histórico conflito fundiário na região. Estiveram presentes sindicatos, Escola Família Agrícola, pastorais sociais, assentados da reforma agrária, quilombolas e organizações populares.
Após o ato, a Associação dos Magistrados da Bahia se manifestou em apoio ao juiz Thiago Borges Rodrigues, que estaria “sofrendo toda a sorte de ameaças públicas ostensiva e reiteradamente realizadas por uma parcela de populares, as quais, inclusive, vêm impedindo o acesso livre dos jurisdicionados às dependências do fórum local”, segundo nota publicada no site da entidade. O texto adverte: “não se constrói democracia com abusos, violência ou intransigência”.
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As origens do fundo e fecho de pasto
Há décadas os povos e comunidades tradicionais do Oeste da Bahia denunciam as violações e invasões de seus territórios. Os problemas começaram com a chegada de empreendimentos do agronegócio na região, nos anos 1970.
Antigamente, as comunidades se identificavam como “geraizeiras”, termo ligado à tradição de criar gado em grandes extensões de terras mais elevadas do Cerrado, os “gerais”. Os animais eram criados soltos e tinham uma alimentação baseada na vegetação nativa, com livre acesso à água.
Com a chegada do agronegócio começaram os processos de grilagem dessas áreas, originalmente terras devolutas – ou seja, que pertencem à União.
O cercamento e a formação de fazendas transformou o modo de criação dos animais, já que os geraizeiros também tiveram que começar a delimitar as áreas de pastagem. Elas seguiram sendo coletivas, mas passaram a ser chamadas de “fecho” quando distantes das moradias. Quando próximas, essas áreas são denominadas “fundo”. Por isso, quem mantém esse modo de vida se identifica como “fecheiro” e as comunidades são conhecidas como de fundo e fecho de pasto.
O município de Correntina se destaca como o mais conflitivo da Bahia, com registro de 132 ocorrências de 1985 a 2023, segundo a Comissão Pastoral da Terra. São frequentes os casos de pistolagem na região. Em 2023, três pessoas foram baleadas no fecho do Cupim, no mesmo município, e uma delas ficou gravemente ferida.
Apesar do reconhecimento constitucional do direito à terra por essas comunidades tradicionais, nunca foi realizada a regularização fundiária dos territórios ocupados historicamente e cuja documentação é motivo de reivindicações desde os anos 80. Isso garante a manutenção do sistema de grilagem e mostra, junto com os episódios de perseguição e prisão, que a ausência do Estado é seletiva e tem um lado.