Liberar o vape não irá impedir o contrabando e pode impulsionar o consumo de cigarros eletrônicos, diz economista

Foto: Arquivo pessoal

Especialista em economia do tabaco, Roberto Iglesias explica que contrabandistas paraguaios seguirão despejando cigarros eletrônicos no Brasil seja o produto legal ou não, e que combate ao mercado ilícito depende de diálogo do Itamaraty com o país vizinho

Grandes empresas de cigarros, como British American Tobacco (BAT, a antiga Souza Cruz) e Philip Morris, têm argumentado que a proibição de cigarros eletrônicos no país favorece o contrabando e impede que o governo arrecade impostos. No entanto, essas multinacionais não estão preocupadas com o contrabando de vapes, e sim ansiosas por liberar o produto no país para ampliar seu mercado consumidor. 

A avaliação é do economista argentino Roberto Iglesias, consultor da Organização Mundial da Saúde (OMS) e especialista em tributação e comércio ilícito de tabaco. Em entrevista ao Joio, Iglesias explicou que liberar o produto não irá impedir o avanço do contrabando e pode impulsionar seu consumo. Hoje, países que legalizaram vapes, como os Estados Unidos ou o Reino Unido, sofrem com um mercado ilegal mais agressivo que o do Brasil, por exemplo.

Além disso, o economista lembra que o mercado ilícito paraguaio – o responsável por contrabandear tanto vape quanto cigarro comum ao Brasil – prosperou no vácuo deixado por um esquema de evasão fiscal criado pelas gigantes do fumo entre os anos 1980 e 90, o “exportabando”. Na época, a indústria nacional exportava milhares de cigarros ao Paraguai para que esses produtos retornassem na forma de descaminho e fossem vendidos a preços baixíssimos.

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Aos poucos, empresários paraguaios começaram a replicar o mesmo modelo com marcas próprias e enriqueceram, caso do ex-presidente Horácio Cartes (2013-2018), dono do grupo Tabesa, a maior fumageira do país vizinho. Mas, nos últimos anos, herdeiros do modelo de “exportabando”, como a família Cartes, e novos empresários podem estar apostando no comércio ilícito de cigarros eletrônicos ao Brasil. Simplesmente legalizar vapes não irá resolver a questão, diz Iglesias.

Na avaliação do economista, parte da solução para o contrabando é diplomática e depende de negociações do Itamaraty junto às autoridades paraguaias. Só que a política externa brasileira ignora o papel do país vizinho, desinteresse que indica falta de vontade em combater o comércio ilícito de frente. Por isso, ele vê influência da indústria do tabaco na forma que o Itamaraty encara o problema. “O Brasil, ao invés de olhar para o Paraguai, faz o negócio do avestruz, que é enfiar a cabeça debaixo da terra”, critica.

Iglesias começou a se dedicar à tributação e ao comércio ilícito de tabaco a partir dos anos 2000, quando começou a trabalhar como consultor para organismos internacionais como o Banco Mundial e a OMS. Antes disso, foi secretário-adjunto de política econômica do Ministério da Fazenda durante o governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) e concluiu seu doutorado na Universidade de Oxford, na Inglaterra. 

Leia os melhores trechos da conversa. 


Liberar o cigarro eletrônico iria impedir o contrabando e favorecer a arrecadação fiscal, como a indústria do tabaco diz? Ou a tendência não é essa?

Eu acho que não. Em primeiro lugar, persistiria o contrabando, que vem do Paraguai. Em segundo lugar, haveria, sim, um aumento da arrecadação, mas as empresas querem legalizar com uma tributação baixa. Então, não haveria um grande aumento da arrecadação, não diminuiria o contrabando e eu acho que aumentaria o consumo. E de um produto que não é seguro, que também tem seus problemas.


Assim como no caso dos cigarros convencionais, o Paraguai surge como essa origem de uma parte considerável do contrabando de vapes. Por que o país ganhou esse status de “hub” do mercado ilícito de nicotina?

Porque já existia como mercado ilícito de cigarro convencional, então o que está havendo no Paraguai neste momento é uma preparação para se transformar em uma plataforma de exportação ilegal de cigarros de diversas origens ao Brasil. O que há são novos players, novos empresários, que estão importando basicamente da China ao Paraguai e, daí, introduzindo o cigarro eletrônico ilegalmente no Brasil porque há canais de ilegalidade, redes de distribuição já estabelecidas.


Qual é a relação entre os “empresários” do contrabando de cigarro convencional com os de cigarro eletrônico? Quais as evidências de que a origem desse “novo contrabando” é paraguaia?

É uma boa pergunta. Na realidade, eu ainda não sei se são exatamente iguais. No Paraguai, há novos players, novas pessoas que estão montando um negócio de exportação ilegal ao Brasil, mas também há pessoas associadas aos players tradicionais, como a família Cartes. Pode haver uma combinação das duas coisas. Pessoas tradicionais que diversificam do cigarro convencional ao cigarro eletrônico, como também atores mais jovens.

O dado que eu tenho é o seguinte: se você toma as apreensões da Receita Federal do universo de cigarro eletrônico, desde o aparelho até o líquido, o principal estado de entrada é o Paraná. E é toda a região de fronteira com o Paraguai. Então, esse é o primeiro indício que o cigarro eletrônico vem de lá.

Depois, o segundo estado com maiores apreensões é Mato Grosso do Sul, que também faz fronteira com o Paraguai. Então o país está importando e trazendo a mercadoria de portos do [oceano] Pacífico até Assunção, fazendo estoque lá para depois introduzir por canais ilegais no Brasil. Também sei que haveria algumas fábricas montadoras de aparelhos. Ou seja, se estão importando insumos [peças]) para terminar de montar o cigarro eletrônico no Paraguai, especificamente na região próxima a Ciudad del Este. 


Não se desarticula toda uma rede e um mercado desses simplesmente liberando um produto, não é? No caso, essa rede continuaria de pé, independente do que o Brasil fizer?

Exatamente. Hoje temos uma situação em que as multinacionais, Philip Morris e BAT, não estão conseguindo comercializar seus produtos no Brasil. Porém, os concorrentes deles estão entrando no Brasil via Paraguai de forma ilegal. Então, o argumento da liberalização é basicamente para eles poderem entrar no jogo também e venderem seus produtos. Por isso a pressão sobre o chefe da Receita Federal [secretário-especial do órgão, Robinson Barreirinhas, como mostramos aqui]. 

Eles não estão interessados em eliminar o comércio ilícito e a reclamação é “me deixa vender aqui no Brasil porque meus concorrentes estão vendendo”. Só que se os cigarros eletrônicos forem legalizados, o problema do Paraguai vai continuar, assim como o comércio ilegal, porque eles não controlam esses importadores e fábricas pequenas.


E essas grandes empresas, como BAT, Philip Morris e Japan Tobacco International são páreo para competir no mercado brasileiro com uma concorrência dessas? Muitos vapes são feitos na China a baixo custo. Aí a proposta da indústria é legalizar, fabricar aqui e usar o tabaco daqui, sendo que empresários chineses e paraguaios usariam insumos e peças muito mais baratos. É uma concorrência viável?

Não. Eu acho que não. E acho que vamos chegar em uma situação semelhante a do cigarro convencional. As empresas tradicionais vão ter uma parte do mercado, mas o cigarro eletrônico barato vai continuar existindo porque eles [Philip Morris, BAT] não vão ter capacidade para derrotá-los economicamente porque não vão fazer preços tão baixos como eles. 

Aliás, nesse mundo ninguém vai tentar acabar com o negócio dessas pequenas empresas. O que BAT e Philip Morris estão dizendo é “me deixa entrar”. As empresas menores já estão no mercado brasileiro, mas as grandes não querem acabar com o negócio das pequenas. Elas só querem ampliar o consumo vendendo seus próprios produtos. 

É a mesma coisa com o cigarro paraguaio convencional, a BAT e a Philip Morris, que criaram esse mercado, não querem destruir a família Cartes. Queriam que o Cartes continuasse, deixar ele ter a sua parcela de mercado para poder utilizar o argumento do comércio ilegal como forma de influenciar a política tributária brasileira.


Como assim a BAT e a Philip Morris criaram esse mercado ilícito? 

Bom, isso é uma coisa que eu estudei. O mercado ilegal foi criado pelas multinacionais que operavam no Brasil através de exportações sem impostos [na época, a exportação de cigarros era isenta de tributos] ao Paraguai com a subsequente reintrodução do produto no Brasil, o “exportabando”. E isso foi feito a partir do fim dos anos 80 com cigarro barato. Não era cigarro de qualidade, de marcas premium. 

As empresas de cigarro criavam uma versão barata, como o Derby, exportavam para o Paraguai e depois garantiam a importação de volta a um preço mais baixo. Quando o Cartes viu que as multinacionais estavam vendendo um cigarro barato, ele entrou nesse mercado e usou os mesmos os canais de entrada ilegal no Brasil que as multinacionais já usavam. 

As fumageiras saíram dessa jogada no fim dos anos 90 porque o governo brasileiro colocou um imposto de 150% na exportação de cigarros e insumos a um conjunto de países da América Latina, entre os quais, o Paraguai, e eles não puderam seguir com isso. E o Cartes assumiu o espaço do Derby com marcas como Eight ou San Marino, que eram equivalentes. Então as multinacionais criaram o Cartes no sentido de que ele aproveitou esse modelo de negócio que podia ser replicado, de contrabando de cigarro barato.

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Se esses argumentos de que políticas antitabagistas impulsionam o contrabando ao aumentar impostos e proibir produtos de nicotina são falsos, por que autoridades continuam a citá-los? No governo Bolsonaro, houve até grupo de trabalho para discutir se reduzir imposto de cigarro reduziria o contrabando. Agora, o chefe da Receita pressionou a Anvisa para legalizar o cigarro eletrônico porque combater o mercado ilícito seria “enxugar gelo”. Por que, não importa o governo, tanta autoridade compra essa ideia?

Porque a influência da indústria do tabaco é muito grande. No mundo todo ela diz que há um problema de contrabando e a solução é baixar os impostos, criar cigarros domésticos mais baratos ou cigarros eletrônicos legalizados e o contrabando magicamente desaparece. Mas o contrabando não desaparece se você não controlar a fonte do problema. E a fonte do problema para o Brasil é o fato de termos um país vizinho com uma comunidade de negócios preparada para fazer exportações ilegais pra cá. Então, há que se buscar outras soluções. 

A solução convencional, de baixar os impostos ou de liberar o cigarro eletrônico, não vai acabar com o mercado paraguaio. Então, precisamos encontrar uma maneira de organizar, formalizar e enquadrar essa comunidade de negócios, sendo que o Paraguai é um sócio comercial, não um inimigo. O Brasil tem um conjunto de investimentos no Paraguai e há uma interação cultural e de negócios que não justifica o imobilismo, deixar de conversar para resolver o problema. É preciso sentar à mesa e discutir a situação.


Então qual é a solução para resolver o contrabando de produtos de nicotina?

A primeira coisa é reconhecer que no Paraguai há um problema. A segunda é sentar-se e conversar com o Paraguai e ver o que eles dizem. E a terceira coisa é, no caso do cigarro convencional, permitir a importação do cigarro paraguaio pagando impostos e, no caso do eletrônico, dado que não é uma indústria tão consolidada e nem gera tantos empregos como o cigarro convencional, negociar como reduzir as importações paraguaias porque eles estão importando para contrabandear ao Brasil. Então é um grupo de pessoas, um grupo de empresários que está fazendo isso. Pode-se discutir qual pode ser o destino econômico desses empresários. É uma discussão que você tem que fazer. 

Quando você fala com as autoridades brasileiras, eles fingem não saber de onde vem o cigarro eletrônico. E as multinacionais também. Eles nunca falam, [ou] muito raramente, em negociar com o Paraguai. E agora estamos deixando que novos grupos econômicos se consolidem lá justamente quando teríamos que falar com eles. O Brasil, ao invés de olhar para o Paraguai, faz o negócio do avestruz, que é enfiar a cabeça debaixo da terra.


Então a solução para o contrabando não é uma solução tributária, e sim diplomática com o Paraguai?

É uma solução diplomática e econômica, ou seja, tem que oferecer uma saída formal. No caso do cigarro convencional, o contrabando serve de argumento para a indústria tentar controlar a política tributária do Brasil. Então, eles não estão interessados em resolver o problema porque foram os responsáveis por causá-lo e ele continua sendo um instrumento de pressão sobre o governo. 

E, no caso, do cigarro eletrônico, fica mais forte dizer “olha, tem contrabando, legalize”. Porque senão eles teriam de dizer a verdade: “Quero legalizar porque quero ter parte no mercado, não estou interessado em acabar com o comércio ilícito de cigarros eletrônicos e, dado que os chineses estão entrando aqui, eu quero entrar com meus produtos também.” É uma briga comercial entre as multinacionais e as fabricantes chinesas.

Não é possível que existam cigarros convencionais baratos. Pode crescer uma nova epidemia com os cigarros eletrônicos, então tem que acabar com isso e buscar a origem desse comércio ilegal – que está no Paraguai. E os brasileiros merecem uma explicação de porquê a diplomacia brasileira não toma isso como um sério assunto diplomático.

Ter uma capacidade de falar aos paraguaios: “vocês podem fazer todos os negócios legais do mundo, mas mexer com a saúde pública brasileira via cigarros baratos ou eletrônicos não”. E isso é uma coisa justa. Uma parte importante da sociedade paraguaia quer acabar com a bandidagem lá. Há um conjunto empresarial mafioso, de pessoas que não são honestas. E há paraguaios dispostos a acabar com isso.


Mas de onde vem essa falta de vontade diplomática do Brasil?

Não é normal. E eu, muitas vezes que falo isso, em diversos momentos da minha vida, tenho sido perseguido. O Itamaraty é o primeiro perseguidor. Quando você diz “por que vocês não vão falar com o Paraguai?”, eles ficam muito revoltados. Por isso, eu acho que há influência da indústria do tabaco no Itamaraty. Ela não quer combater o mercado ilícito e que tudo o que ela fez nos anos 80 e 90 volte à tona. Eu tenho tentado me aproximar de embaixadores e realizado estudos para tentar entender por que há essa resistência do Itamaraty em conversar. Esse é o enigma da minha vida. 

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