Consumo da nicotina causa dependência e mata 145 mil brasileiros ao ano, mas programa da TV Globo deixa tabagismo rolar solto na forma de intriga, piada ou meme sem que fumantes tenham assistência de saúde
Pegue um fumante, tire-o de sua vida cotidiana e isole-o dentro de uma casa, preso por até três meses com pelo menos outras 20 pessoas, algumas delas também fumantes. Além disso, permita-lhes que levem quantos maços de cigarros quiserem ou forneça-os a quem pedir.
Sem acesso à vida fora desta casa – família, trabalho ou lazer –, submeta este fumante a provas de resistência e conflitos pessoais estressantes, tudo isso exposto a uma audiência de milhões de brasileiros. É o que faz o Big Brother Brasil, reality show da TV Globo.
O que irá acontecer com esta pessoa que já fuma? A resposta é óbvia: ela irá fumar mais, o que pode aprofundar sua dependência no cigarro e turbinar a exposição da fumaça tóxica do tabaco a quem mais estiver por perto, o que irá prejudicar a saúde de não fumantes.
“Em qualquer adicção, se você tem disponibilidade à vontade e vê os outros [usando], isso vai estreitar seu repertório de comportamentos e aquilo será a única coisa que você vai fazer”, explica a médica psiquiatra Carolina Costa, vice-presidente da Associação Brasileira de Estudos do Álcool e outras Drogas (Abead).
Não é à toa que, ao longo das últimas edições do BBB, chega-se a um momento em que espectadores e sites de notícias lotam a internet com curiosidades ou piadas sobre participantes que são “chaminés” e até mesmo memes sobre o programa precisar de “patrocínio de cigarro”, um tipo de publicidade que é proibida no país desde 2000.
Na edição deste ano, o “gancho” para o debate foi a participante Joselma, uma dona de casa de 54 anos, cujo genro Matheus, que também está no BBB, “brincou” com o vício da sogra no programa.
“Ela bebendo fuma 40 cigarros. Na festa, vai fumar o estoque inteiro. Ela é uma chaminé, a própria fogueira de São João”, disse. A associação entre álcool e tabaco é bem documentada – o risco de beber pesadamente é maior entre tabagistas, além de o álcool ser gatilho para o desejo de fumar. A mistura turbina também em 20 vezes a probabilidade de câncer.
“Todo fumante tem uma doença chamada tabagismo, que tem três características: a dependência física da nicotina; a comportamental, ligada a gatilhos, comportamentos sociais, a familiares ou amigos que fumam; e a dependência psicológica, que é fumar mais quando estiver nervoso ou ansioso”, diz a médica do trabalho Cristiane Tourinho, coordenadora do Ambulatório de Cessação do Tabagismo da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Além disso, nesta mesma edição, outra participante, a atriz gaúcha Vitória Strada, 28 anos, disse que fora da casa usava vape e que, lá dentro, teve de pedir cigarros por conta do vício que adquiriu em nicotina.
Ao contrário do caso de Joselma, o tabagismo de Strada, no entanto, está sendo romantizado por espectadores nas redes sociais – e virou marketing espontâneo para fumo. “Bom dia com vitória strada sendo uma gostosa fumando”, compartilhou um perfil no antigo Twitter, o X. “Estou viciada em ficar vendo a vitória strada fumando”, disse outro.
E a Globo poderia fazer diferente: no Big Brother do Reino Unido, a produção evita transmitir imagens da área de fumantes para não incentivar o tabagismo. O participante que quiser fumar precisa ir para uma sala em separado que só aceita uma pessoa por vez e, por consequência, ganha menos tempo de exibição nas gravações.
No BBB, tabagismo virou meme
Não é possível afirmar, no entanto, que se fume mais hoje do que em edições passadas no programa brasileiro. Até porque do início da transmissão do programa, em 2002, até hoje, a prevalência do tabagismo no Brasil caiu quase pela metade: de 22,4% em 2003 para 12,6% em 2019, segundo dados do Ministério da Saúde.
“Dos últimos anos para cá, com streaming, Globoplay e Twitter, o que muda talvez não seja a quantidade de cigarros, mas a percepção que se fuma mais porque essa vigilância é maior”, avalia a relações públicas Gabriela Habckost, doutoranda em Comunicação na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), que pesquisou como o público interage com o BBB no antigo Twitter em sua graduação e no mestrado.
“A gente vê mais imagens de quem está confinado e acaba sabendo mais qual é o dia a dia deles”, diz.
A relações públicas também explica que, no caso do programa, a audiência cria relações “passionais” com os participantes e defende suas atitudes como se fossem familiares ou amigos, por mais “erradas” que pareçam. Ou seja, há um viés de identificação, de se reconhecer de algum modo na jornada do brother (ou sister) favorito.
Isso abre brecha para que alguns espectadores, por exemplo, se sintam atraídos a “reproduzir” hábitos dos participantes para os quais torcem e admiram, o que pode incluir o tabagismo. É o exemplo dos tuiteiros fascinados em ver a participante Vitória Strada fumando. Além disso, os debates sobre fumo que surgem nas redes a partir do programa costumam ir pelo viés do meme, e não pelo da saúde.
“Houve edições como a de 2021 em que o [cantor] Fiuk organizava sua cota de cigarros e a galera ficou impressionada com a quantidade que ele fumava, o que gerou um debate, que não foi profundo sobre tabagismo, mas pelo meme”, afirma Habckost. “E aí virou um meme sobre como com todo aquele consumo ele saía melhor em provas de resistência ou agilidade que o companheiro crossfiteiro”, diz.
Durante sua participação no reality show, Fiuk estimou fumar 120 cigarros por semana, quase um maço por dia. Em 2024, após ser internado aos 33 anos com uma “tosse muito estranha”, exaustão física e mal-estar, o cantor afirmou que iniciou um tratamento para lidar com a dependência do fumo.
No BBB23, assim como Fiuk, a participante Bruna Griphao passou a ser elogiada por ganhar diversas provas “mesmo sendo fumante”. Ela sentiu abstinência do fumo em um dia de festa em ambiente fechado e precisou implorar à produção para que a deixassem fumar um cigarro. Na web, foi tratada como “mimada”.
Além disso, em alguns dos programas, o tabaco virou tônica para intrigas. Ainda em 2023, a participante Tina fez “dupla” com o funkeiro MC Guimê, um tabagista, em uma dinâmica. Ela disse ter virado “fumante” no período, o que foi recebido aos risos pelos demais brothers. Hoje, o tabagismo mata 145 mil brasileiros ao ano, cerca de 477 ao dia, segundo o Ministério da Saúde. O fumo passivo é responsável por 15% das mortes causadas pelo tabaco anualmente, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS).
Anos antes, na edição de 2014, um “brother” eliminado levou embora os cigarros que tinha trazido à casa, o que causou o repúdio de participantes que estavam de olho no estoque do ex-participante. Na época, médicos apontaram que a forma como o cigarro virou “moeda de troca” entre participantes fumantes lembrava a dinâmica de cadeias, onde o fumo também é racionado.
Em 2015, uma das participantes, Mariza, quase abandonou o programa devido à abstinência de nicotina, já que precisou enfrentar longas horas sem cigarros em meio a uma festa. Ela chegou a arrumar suas malas e pediu à produção para desistir, mas permaneceu e acabou eliminada pelo voto do público.
“Não se fuma sozinho”, diz a psiquiatra Carolina Costa, da Abead. “Você prejudica quem está em volta da fumaça e quem continuará no ambiente depois de se ter fumado lá”, relata. Além do fumo passivo, também há o de terceira mão: os carcinógenos emitidos pela fumaça do cigarro podem se acumular nas roupas, nos cabelos e nas superfícies, mas ainda faltam dados sobre quais os riscos disso à saúde.
Bronca sim, auxílio médico não
Em janeiro de 2023, o ex-diretor do programa, Boninho, chegou a dar uma “bronca” nos participantes tabagistas, que estavam circulando pela casa com cigarros apagados ou segurando-os em cima da orelha.
“Nós não gostamos de fumantes” e “o melhor exemplo que vocês podem dar é parar de fumar”, disse Boninho na ocasião. No entanto, bronca nenhuma funciona para esse objetivo.
“Há muito desconhecimento do tabagismo enquanto doença e ele é encarado como um hábito: ‘ó, vamos parar de ficar fumando?’ Eles estão sob dependência química! Não é simples assim”, diz a médica Cristiane Tourinho, do Ambulatório de Cessação do Tabagismo da UERJ. “A gente precisa dar ferramentas: o medicamento, a orientação e o acompanhamento”, explica.
Entre os remédios geralmente prescritos por profissionais da saúde para tratar o tabagismo estão a bupropiona, um antidepressivo que age nos receptores de nicotina no cérebro, ou adesivos e chicletes de nicotina sintética, que tentam reduzir os sintomas da abstinência de cigarro em quem está tentando parar de fumar.
Segundo o jornal cearense O Povo, a lista de itens proibidos de se levar ao BBB incluiria, aliás, antidepressivos – o que impediria um tabagista em tratamento de levar bupropiona ao BBB. É permitido, contudo, levar os próprios cigarros.
Fora broncas públicas, não está claro o que a produção do programa faz para ajudar tabagistas a deixarem o fumo, além de manter a “boca livre” de cigarros em um ambiente estressante e confinado, o que é gatilho para que esses fumantes tenham mais dificuldades.
E isso já trouxe repercussões sérias: uma das fumantes da edição de 2005 do BBB, por exemplo, a dona de casa Marielza, na época com 46 anos, teve um acidente vascular cerebral (AVC) em pleno programa. Na época, o incidente foi atribuído ao tabagismo pelos médicos que a examinaram.
O próprio Boninho, aliás, já publicou um vídeo debochando da ex-participante Yasmin Brunet, do BBB24, que foi ao confessionário reclamar que seu cigarro havia acabado. Na oportunidade, o programa forneceu um maço inteiro a ela, segundo o ex-diretor do BBB.
A Globo não respondeu à tentativa de contato do Joio via e-mail com dúvidas sobre as regras do BBB para cigarros e dos compromissos da emissora pela saúde de participantes dependentes da nicotina.
Assine nossa newsletter Sexta Básica e receba nossas investigações direto no seu email
Como parar de fumar
O Sistema Único de Saúde (SUS) oferece tratamento gratuito para quem quer parar de fumar, como adesivos, pastilhas, gomas de mascar (terapia de reposição de nicotina) e bupropiona, além do acompanhamento médico necessário para cada caso. Consulte o centro de controle de tabagismo de seu estado neste link.
Veja a lista de perguntas não respondidas que enviamos à assessoria de comunicação da Globo:
- Quais regras o programa adota para consumo de tabaco hoje? Um tempo atrás eram os próprios participantes que levavam os seus maços, depois era possível trocar estalecas por cigarros e hoje o consumo parece ser liberado, inclusive autorizado o uso de palheiros, correto? Há alguma forma de limitação ou restrição ao uso diário por parte da produção do BBB?
- Quais alternativas participantes tabagistas do BBB têm fora continuar fumando? O programa oferece adesivos de nicotina ou outras modalidades de cessação que possam auxiliar fumantes a pararem ou diminuírem o consumo, se assim quiserem durante a sua participação no BBB?
- O uso de cigarros no quintal do BBB se enquadra no conceito de fumo em recinto coletivo parcialmente fechado, como disposto no regramento federal antifumo, posto que se trata de fumo em área de uso coletivo e coberta por parede, divisória, teto, toldo ou telhado em qualquer um de seus lados. A lei até exime o fumo em local fechado em estúdios ou locais de filmagem, mas só quando necessário à realização da obra. Isto posto, qual seria a necessidade do uso de cigarros para a realização do BBB?
- Considerando o disposto no regramento federal antifumo em local parcialmente fechado mencionado anteriormente, em caso do BBB se enquadrar na isenção prevista pela lei, a Globo mantém as condições de isolamento e ventilação da casa dispostas na portaria do governo federal que define as regras para fumo em ambientes fechados autorizados? É possível indicar se há sistema de ventilação por exaustão e o planejamento físico previstos?
- Quais medidas a produção do BBB adota para impedir que o uso constante de cigarros se torne marketing indireto de fumígenos para a audiência, de modo que assistir fumantes repetidamente se torne um convite a fumar? Há alguma tarja ou advertência que seja inserida ao longo da programação para lembrar o público dos malefícios do tabagismo?
- A Globo mantém algum tipo de acordo comercial para o fornecimento dos cigarros e palheiros usados no programa? Como eles são comprados/adquiridos?
- Quais medidas a produção do BBB adota para prevenir os impactos do fumo passivo a participantes não fumantes, considerando a presença de inúmeros tabagistas?