Foto: Eduardo Manfré

Um “picareta” na prefeitura

O que a história de Igor Pontarolo, vice-prefeito da pequena Guamiranga (PR), revela sobre as mudanças na relação de compra e venda das folhas de tabaco no Brasil

“Nem dá pra dizer que está a 100 quilômetros por hora, né?” E, de fato, não dava. Estávamos a bordo de uma pick-up Ram 2.500, um monstro de 3,5 toneladas, com motor de 400 cavalos e potência de 6.7. Um veículo que custa quase meio milhão de reais e é projetado para estradas de terra, mas deslizava por asfalto novo, um tapete. A pavimentação, de cerca de sete quilômetros, se estende por boa parte da área rural de Guamiranga, município do Centro-Sul do Paraná, e desemboca na porta da casa do prefeito. É nessa estrada vicinal, que liga a BR 373 à localidade de Boa Vista, que a Ram faz curvas a toda, entrecortando pequenas lavouras de tabaco.  

Quem chama atenção para a velocidade do veículo é Marcelo Leite, prefeito de Guamiranga pelo PSD. No banco do passageiro, ele alerta a marca dos 100 quilômetros, talvez para ostentar a potência da caminhonete ou para disfarçar a pressa descabida do motorista, Igor Pontarolo, vice-prefeito mais jovem do Paraná, eleito para o comando da cidade também pelo PSD.

O passeio na pick-up de Pontarolo acontece numa tarde quente de novembro de 2024. Ele e Marcelo Leite receberam o Joio na sede da prefeitura. Depois da entrevista, nos convidaram para conhecer algumas lavouras de fumo da região. E elas são muitas. Segundo o prefeito, metade da população da cidade (que tem pouco mais de 4 mil habitantes) trabalha no cultivo de tabaco. E essa produção corresponde a 1/3 de toda a riqueza gerada em solo guamiranguense. 

Cerca de 25 mil agricultores plantam fumo, segundo a Secretaria da Agricultura e do Abastecimento do estado. Guamiranga é apenas um entre 128 municípios produtores de tabaco.  Em 2023, conforme o Instituto Paranaense de Desenvolvimento Econômico e Social (Ipardes), a cidade produziu 6,8 toneladas de tabaco. A cultura fica atrás apenas da soja, com 24,7 toneladas, e do milho, com 10,7.

Marcelo Leite e Igor Pontarolo exibem, com orgulho, a plantação de fumo. Foto: Eduardo Manfré.

O prefeito Marcelo Leite mostra com orgulho sua plantação de fumo. Imensa, verde e com pés que ultrapassam um metro e meio. A expectativa é de um bom lucro na hora da venda, como foi na safra anterior. As chuvas do primeiro semestre de 2024, que afetaram mais de 400 municípios  no Rio Grande do Sul – maior estado produtor do país –, aumentaram a demanda pelo produto do Paraná e de Santa Catarina. E as empresas que compram as folhas reajustaram o preço. 

“Fazia tempo que não tinha reajuste. Teve família que conseguiu vender por quase R$ 30 o quilo, independente da classificação”, contou Leite. Na safra 2022/23, por exemplo, o quilo do fumo foi vendido em média a R$ 18,12.

Marcelo Leite e Igor Pontarolo são personagens que têm muito em comum, não apenas por comporem uma chapa vitoriosa na última eleição municipal, nem por terem parentesco (Leite é casado com uma Pontarolo). Mas também por serem fumicultores bem-sucedidos, em um patamar que destoa da realidade da maioria. 

Por mais que a cultura do tabaco tenha bom rendimento – levando em consideração fatores como produtividade por alqueire –, seriam necessários ao menos 42 meses para que uma família fumicultora pudesse comprar uma caminhonete como a de Pontarolo. 

Segundo um relatório divulgado em 2023 pelo Centro de Estudos e Pesquisas em Administração da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Cepa/UFRGS), considerando-se todas as fontes de renda, os produtores de tabaco da região Sul atingem uma renda mensal média de R$ 11.755,30 – é importante dizer que o trabalho foi patrocinado pelo SindiTabaco, entidade que representa transnacionais do fumo como Philip Morris e British American Tobacco (BAT).

Nessa conta, entretanto, não entram fatores que podem impactar diretamente a renda das famílias, como a saúde de quem planta fumo. Segundo o Centro de Estudos sobre Tabaco e Saúde (Cetab), da Fiocruz, considerando as condições e o ambiente de trabalho, as pessoas que se dedicam a essa produção são submetidas a rotinas que podem resultar em males como a doença da folha verde do tabaco, dores na região cervical, lombar, membros superiores e inferiores, intoxicações por agrotóxicos, transtornos mentais, entre outros agravos.  

Os picaretas: ascensão e política 

Um mar de folhas verdes, até onde a vista alcança, retrata bem a lavoura da família Pontarolo. Ela destoa das plantações tradicionais, que normalmente ocupam propriedades rurais pequenas localizadas em terrenos acidentados. Segundo o vice-prefeito, sua plantação teria cerca 1,6 milhão de pés de fumo – o que, se for verdade, a transformaria em uma das maiores da região; quem sabe, até do país. 

Um mar de fumo: as famílias do prefeito e do vice plantam em quantidade e extensão bem acima da média. Foto: Eduardo Manfré.

“Eu viajo bastante para o Rio Grande do Sul, sei que é difícil você encontrar lá produtor de 100, 150 mil pés de fumo. Aqui nós temos produtores com mais de um milhão. Minha família mesmo planta nesse patamar há muito tempo. Hoje nós estamos com cerca de 1,6 milhão de pés. Isso tudo no manual, plantando e colhendo na mão”, disse. 

A lavoura de Marcelo Leite também é gigante. Em 2016, por exemplo, ele plantou 850 mil pés. Hoje a produção é um pouco menor, mas ainda incomum para a realidade da fumicultura.  

As famílias Leite e Pontarolo estão nos fumais há gerações. Seus pais plantavam, assim como seus avós. Essa cultura, que na maior parte das vezes está enraizada na agricultura familiar, deu um salto na geração do prefeito e do vice. Gilberto Pontarolo, pai de Igor, falecido há alguns anos, era quem comandava as lavouras. O filho assumiu o protagonismo depois da sua morte. Mas não apenas como fumicultor. 

“Eu tenho uma empresa, chamada IPS Tabacos. Compro o fumo dos produtores, pago na hora e depois vendo para as grandes empresas”, contou Igor Pontarolo. Ele é um atravessador de fumo – ou, na gíria das cidades que produzem fumo, um “picareta”. Esses empresários são um elo entre as mais de 130 mil famílias que fazem do Brasil o terceiro maior produtor de fumo do mundo (e o maior exportador) e as transnacionais que processam a matéria-prima. 

Grande parte delas se concentra no Rio Grande do Sul, nas cidades de Santa Cruz do Sul – que tem unidades  de processamento de tabaco da BAT, da Japan Tobacco International, da Philip Morris e da Universal Leaf – e Venâncio Aires, que concentra gigantes como a Continental Tobaccos e a Alliance One.

“Esse ano pretendo comprar três milhões de quilos de tabaco”, nos diz Igor. A estimativa é alta. Se ele comprasse apenas tabaco produzido na sua cidade, mais de 40% de todo o fumo de lá passaria por sua empresa. Mas ele também compra de outros municípios, como Irati e Prudentópolis. “Tem terceirizados bem maiores que eu, tem uns que compram 4 ou 5 milhões de quilos”, comparou. 

O termo “terceirizados”, preferido por ele, se refere aos atravessadores. A empresa de Igor fica na rodovia BR 373, em Prudentópolis. Um grande barracão verde recebe e estoca as folhas compradas por ele em fumais da região. Ao lado, outro barracão também guarda tabaco. Este, de cor amarela, pertence a Albino Skavronski, o Bino, amigo pessoal de Igor. 

Prudentópolis está localizada a 20 quilômetros da vizinha Guamiranga. Com população de 50 mil pessoas, ocupa a décima posição entre os municípios que mais produzem fumo no país. Assim como Guamiranga, Prudentópolis teve como candidato nas eleições de 2024 um vice-prefeito ligado ao fumo: “Bino do Agro”. Filiado ao Partido Novo, Bino do Agro é, na verdade, o amigo de Igor Pontarolo, Albino Skavronski, conhecido na região como “Bino Tabacos”.

A troca do “tabaco” pelo “agro” certamente teve seus motivos eleitorais, dentre eles o fato de o cabeça de chapa ser um profissional da área da saúde. “Doutor Rui Ferro” é médico e filiado ao PDT. Sua principal pauta como candidato a prefeito de Prudentópolis foi a “humanização dos serviços públicos”. A coligação “Renovação e Esperança”, formada por PDT e Novo, ficou em segundo lugar no pleito, com 10.545 votos, diante dos 12.503 conquistados pela chapa vencedora, “Honestidade, Fé e Progresso” (PSD, PL, PP, Republicanos, Avante e PMB), que reconduziu Adelmo Luiz Klosowski ao cargo de prefeito, que já tinha ocupado de 2015 a 2020. 

Igor, por sua vez, é herdeiro de uma vasta tradição. Assim como no fumo, os Pontarolo também despontam na política regional há décadas. Em 1988, Gabriel Pontarolo, do PMDB, estreou em uma eleição, na cidade de Imbituva, também produtora de fumo da região central do Paraná. Além dele, outro Pontarolo disputou aquele pleito. Miguel Pontarolo, padrinho de Igor, concorreu ao cargo de vice-prefeito pelo PT na chapa com Luiz Batista Alessi.

Depois vieram Rubens Pontarolo (PDT), primo de Igor, que foi prefeito de Imbituva. Assim como seu tio, Zezo Pontarolo (PSDB). Elder Pontarolo foi vereador por Prudentópolis. Em Guamiranga, além do tio de Igor, Gabriel Pontarolo, que dá nome à estrada cuidadosamente pavimentada que leva à casa de Marcelo Leite, há também, na Câmara Municipal, João Francisco Pontarolo (conhecido como João do Gino, do PSD), Afonso Moacir Pontarolo (PSDB) e Natan Pontarolo (DEM), irmão de Igor. 

Diferente de Igor Pontarolo, Bino não carrega um sobrenome visto no letreiro de uma loja no centro da cidade, em produtos à venda no mercado ou na placa de bronze que marca a fundação da Câmara Municipal. Seu apelido, porém, pode ser visto em letras garrafais que estampam a matriz da Bino Tabacos, em Prudentópolis. A empresa também tem lojas nas cidades de Imbituva, Ivaí e Palmeira. Além de atravessar o fumo, as lojas de Bino vendem insumos agrícolas para várias culturas, oferecendo até mesmo serviços técnicos para os agricultores.       

A ascensão social de Bino é notável. Nos dados registrados por sua candidatura junto ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE), está declarado um patrimônio no valor de R$ 2,2 milhões – cerca de um milhão a mais que o registrado pelo cabeça de chapa Doutor Rui. Dentre os bens declarados pela candidatura, consta um barracão em Prudentópolis na Rua Sagy Naked, 941, onde funciona uma das lojas de Bino. No mesmo endereço encontramos o CNPJ de outras empresas, como a NT Tabacos – que, de fato, funciona no mesmo local que a Bino Tabacos, conforme nos indica o letreiro da fachada. Ainda no mesmo endereço se encontra a Centro Sul Transportes, registrada no nome da esposa de Bino.   

Cada vez mais importantes

Se hoje tais negócios são marcados pelo emaranhado de CNPJs, pelos grandes barracões, pelas atividades diversificadas e até mesmo pela candidatura à prefeitura da cidade, antigamente era diferente. Assim nos conta a advogada Vânia Moreira, moradora de Prudentópolis desde a década de 1980 e que, desde os idos de 1990, advoga em favor dos produtores de fumo da região. “Os atravessadores são ‘o top’. É o top da cadeia antes da indústria.”

Segundo Vânia, a atividade tem ganhado força na região nos últimos dez anos. 

“Eu lembro tão bem que tinha um aqui. Era uma portinha de nada. Ele ia lá, comprava o fumo, botava em um caminhãozinho velho e levava na indústria e vendia por um valor mais alto do que comprava e ganhava dinheiro. Pronto, era isso. Não tinha essa estrutura que tem hoje”, relembra a advogada. Conversando com diversas fontes durante a produção da reportagem, dentre elas algumas que pediram anonimato, o crescimento do número e do tamanho dos atravessadores na região parece ser notável. 

 A advogada Vânia Moreira testemunhou a mudança no perfil dos picaretas: “Foram as empresas que deram essa brecha pra entrar os terceiros”. Foto: Eduardo Manfré.

A evolução foi atestada, inclusive, durante a entrevista com o prefeito e o vice-prefeito de Guamiranga. “Na verdade foram as empresas que deram essa brecha pra entrar os terceiros. Se faltasse fumo, o produtor tinha que completar a estimativa. Mas se sobrasse, elas não compravam. E o produtor precisa vender, né?”, contou Marcelo Leite. 

Já para o vice-prefeito e atravessador, Igor Pontarolo, o negócio do fumo vem mudando, principalmente nos últimos anos. “Bem antigamente as empresas forneciam até um custeio para o produtor, sabe? Para se manter  durante a safra até plantar o fumo, colher, secar. E tinha um contrato que o agricultor tinha que entregar tantas toneladas, até se não entregasse vinha uma multa, né? Aí muitos foram multados e acabaram saindo das empresas e plantando por conta. E os terceiros também fornecem os insumos, as sementes, os adubos, os agrotóxicos… Hoje mudou bastante a cultura do fumo.”

Flexibilização favorece empresas

Mas, para entender como funcionam as engrenagens desse negócio que, ao menos em Guamiranga e Prudentópolis, levou atravessadores a disputarem o Executivo municipal, é preciso ir mais fundo. É preciso lançar um olhar sobre o Sistema Integrado de Produção, sobre a formação de preço pelas indústrias e pelas entidades do fumo, sobre as relações comerciais e produtivas entre produtores, atravessadores e a indústria.     

O Sistema Integrado de Produção de Tabaco (SIPT) se caracteriza por um contrato que é firmado entre a indústria e o agricultor. Ele foi criado há mais de um século pela Souza Cruz, depois comprada pela British American Tobacco. Nele, as fumageiras estabelecem a garantia de compra do fumo e da assistência técnica durante plantio e colheita. Uma relação que tem como mediador a figura de um técnico agrícola que é empregado das fumageiras. 

Conforme os contratos, as empresas se responsabilizam por fornecer as sementes, uma parte dos agrotóxicos e também empréstimos para que o agricultor, caso não tenha recursos, possa construir o galpão e a estufa de secagem, necessários ao processo produtivo.

Entretanto, cruzando essa cadeia, aparece a figura do “atravessador”. Segundo o Mapa de Empresas do Governo Federal, que revela a quantidade de empresas ativas no país, existem, nos três estados do Sul, 296 empresas de comércio atacadista de fumo em folha não beneficiado. 

296 empresas de atravessamento de fumo

151

no Rio Grande do Sul

76

em Santa Catarina

69

no Paraná

Conforme a Classificação Nacional de Atividades Econômicas (CNAE), o comércio atacadista de fumo em folha não beneficiado se caracteriza pela compra e venda de folhas de tabaco em grande escala, sem que elas sofram qualquer processo de transformação. Basicamente esse é o trabalho dos atravessadores. 

O valor pago pelas folhas é baseado na classificação feita pela indústria. Não se trata apenas da qualidade do fumo. Entram nessa equação a conjuntura econômica do país, questões climáticas que afetam a produção e o volume dos estoques das empresas.

Esse valor é definido ao início de cada ano, numa negociação que é feita nas chamadas Comissões para Acompanhamento, Desenvolvimento e Conciliação da Integração (Cadecs). No caso da cadeia do fumo, as Cadecs reúnem representantes das empresas, das federações de produtores rurais, de trabalhadores e da Associação dos Fumicultores do Brasil (Afubra).

Porém, tudo isso acontece meio tarde demais. A colheita do tabaco se inicia entre outubro e novembro. Depois vem a secagem, que leva mais algumas semanas. Ou seja, em dezembro muitos agricultores estão com os galpões cheios. E também endividados. Precisam pagar fornecedores, diaristas que trabalham nas lavouras e fazer as compras para as festas de final de ano. É aí que os atravessadores entram em cena, correndo para as lavouras para comprar o fumo antes dos reajustes, no preço da colheita anterior ou pagando muitas vezes um pequeno valor a mais. 

A bronca é antiga e encontra eco entre fumicultores dos vários municípios produtores do Sul do país, como atesta a moção de repúdio de novembro de 2024, na qual os vereadores da cidade de Ituporanga, em Santa Catarina, denunciam que o atraso prejudica os pequenos produtores.“Essa prática das empresas fumageiras impede que os fumicultores obtenham um preço justo pelo tabaco”, escreveram. 

Os plantadores de fumo ficariam, assim, “à mercê dos atravessadores, que compram o fumo dos produtores por valores bem abaixo da tabela (atualmente em torno de R$ 200 a arroba), enquanto as fumageiras, que deveriam pagar os valores estipulados na tabela (em média R$ 300 a arroba), se omitem, causando prejuízos irreversíveis aos nossos agricultores”. 

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“Pago na hora”

“Eu já pago na hora, nas empresas o pagamento é com quatro dias úteis. Para o produtor é bom porque tem uma concorrência, ele não fica dependendo só das fumageiras pra vender o fumo”, afirmou Igor Pontarolo, que arremata muito produto no final de cada ano, antes de o preço da safra ser definido. Ele estoca e depois leva para as grandes empresas, muitas vezes cruzando mais de 700 quilômetros até o interior do Rio Grande do Sul. 

Ele diz que financeiramente é vantajoso para os agricultores venderem para os picaretas – ou terceiros, como ele chama. “Teve anos que o produtor chegava para vender na empresa e o quilo estava a R$ 20 e os terceiros estavam pagando R$ 22.” 

No entanto, fontes ouvidas pelo Joio dizem o contrário. Afirmam que os picaretas pagam pouco, para lucrar na hora de revender. “Os atravessadores realizam as compras desde o início das colheitas, em novembro de cada ano. Pagam preços baixíssimos, e como é uma época que as famílias estão com a grana curta e precisam pagar os diaristas, mercado e se programar para as festas de final de ano, se sentem sem saída, e vendem muito abaixo do preço. Fumo que valeria R$ 19 por quilo foi vendido a R$ 7, R$ 8.” A fala é de uma fonte que pediu para não ser identificada, mas que trabalhou durante anos no Programa Nacional de Diversificação de Áreas Cultivadas com Tabaco, que busca dar alternativas às famílias que sobrevivem do cultivo do fumo e é tocado pela Agência Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural (Anater). 

Mesmo perdendo (ou deixando de ganhar) o fumicultor vende aos picaretas. E isso tem relação com as dívidas que as famílias acumulam ao final de cada safra. Essas contas são resultado direto do Sistema Integrado de Produção de Tabaco. Quem explica isso é o economista Roberto Iglesias, consultor da Organização Mundial da Saúde (OMS). 

“O endividamento dos agricultores é parte da natureza do Sistema Integrado. Depois que as empresas fornecem insumos e empréstimos, elas mesmas barganham e definem os valores a serem pagos pelo quilo do fumo. Na economia isso é chamado de monopsônio, que é um fenômeno que ocorre quando poucos compradores controlam o mercado. Ou seja, são muitos vendedores de fumo e poucos compradores. Assim, as empresas têm um poder muito grande de depreciar a classificação do fumo produzido e de definir o preço a ser pago”, explica.

Iglesias alerta que em outros países é o Estado que intermedeia a relação entre os fumicultores e as empresas de processamento de tabaco. “No Brasil isso corre muito solto. Os processadores, que são poucos, classificam e precificam do jeito que é mais conveniente para eles e, assim, os fumicultores terminam recebendo pouco e acumulando dívidas.” 

O monopólio sobre a classificação do tabaco é uma reclamação antiga dos produtores. Em Teixeira Soares, município paranaense que produziu mais de duas mil toneladas de fumo em 2023, mora Antonio Luciano de Souza. Ele é técnico em agroecologia e também trabalhou no Programa Nacional de Diversificação de Áreas Cultivadas com Tabaco. 

“As empresas normalmente depreciam o fumo. Na hora da compra, elas reclassificam o tabaco. O agricultor enfarda tudo conforme a classificação das folhas, ou seja, separa tudo de acordo com a qualidade. Mas a empresa chega para buscar o fumo e reclassifica por conta própria. Se tem, por exemplo, mil quilos de BO1 (variedade de tabaco de melhor qualidade), a empresa fala que só tem 800. Ela rebaixa a qualidade e paga menos do que vale”, ressalta Antonio. 

O cronograma das grandes empresas favorece os atravessadores: a negociação com elas acontece só no início do ano, mas semanas antes o fumo já está à espera no paiol – e as dívidas, à espera no banco. Foto: Eduardo Manfré.

O técnico em agroecologia afirma que são muitas as artimanhas das empresas para reduzir o preço pago pelas folhas. “Já vi fumicultor que teve fumo rebaixado porque a empresa disse que encontrou pena de galinha no meio do tabaco. Mas esse agricultor não tinha galinhas na sua propriedade.” 

Quando o contrato do Sistema Integrado é firmado entre fumageira e agricultor, estima-se a produção em quilos daquela safra, ou seja, é estipulada a produção média daquela lavoura que seria integralmente vendida à empresa contratante. Mas, segundo Antonio, historicamente os fumicultores costumam plantar além da estimativa acordada com as empresas – e esse excedente vai para os atravessadores. 

Agora, continua Antonio, os próprios picaretas estariam firmando contratos com os fumicultores, tudo com a bênção das grandes fumageiras. “As empresas fazem muito corpo mole na hora da compra. Rebaixam a qualidade do fumo e demoram para reajustar o preço. Assim, tem fumicultor que planta à parte. Não faz contrato com as grandes empresas, faz com os picaretas. Os picaretas têm caminhões para buscar o fumo, têm barracão, têm gente para classificar. E, agora, alguns estão até fornecendo os insumos para os agricultores. E, no final da safra, compram tudo, pagando muitas vezes um bom preço.” 

Aos olhos de quem atua defendendo fumicultores, as mudanças podem ter significados mais complexos. Uma hipótese levantada por Vânia Moreira para o fenômeno do crescimento dos atravessadores do fumo é a tendência a uma certa flexibilização que favorece as grandes empresas. “Eu acho que eles vão querer construir uma forma de trabalhar que minimize ao máximo a responsabilidade que eles (empresas que processam fumo) possam vir a ter com relação a esse agricultor.” 

No passado, explica, quando vigorava apenas o Sistema Integrado de Produção, a empresa compradora de folhas de fumo acompanhava o agricultor durante todo o ciclo – semente, mudas, plantio, colheita, secagem e venda. Era assinado um contrato de exclusividade. Em caso de um processo judicial decorrente de uma doença, por exemplo, os próprios contratos comprovavam o vínculo entre a empresa e o produtor,  que procurava seus direitos em face do contratante.   

A hipótese da advogada encontra justificativa em um processo muito famoso na região, o caso de Lídia Maria Bandacheski do Prado – que já foi abordado em diversas reportagens e até em documentário. A agricultora desenvolveu uma doença degenerativa pelo contato seguido com os agrotóxicos usados no plantio do fumo. “Ela começou a trabalhar na lavoura com apenas nove anos. Sua família sempre assinou contrato com a mesma empresa. Então, assim, dos nove anos até os 40, quando ela fica doente, é a mesma empresa”, conta Vânia, que representa Lídia nos tribunais. 

“Haverá sinais” 

Para produzir esta reportagem, o Joio realizou um périplo pelos municípios produtores de fumo do Centro-sul paranaense. É preciso destacar que muitos prefeitos recusaram as solicitações de entrevistas, outros apenas não responderam os convites e, em um dos casos, o convite foi aceito, mas, cara-a-cara com os repórteres, o prefeito alegou a necessidade de cancelar a conversa, por conta de uma cirurgia marcada para dali a 15 minutos.   

Marcelo Leite e Igor Pontarolo, prefeito e vice de Guamiranga, não só abriram as portas da prefeitura para a equipe de reportagem, como também embarcaram em uma pequena jornada pelos fumais da região. Durante as sessões fotográficas, em meio à lavoura, era notável o orgulho de ambos, seja pelos enormes e saudáveis pés de fumo da plantação de Leite, seja pela bruta e potente caminhonete de Pontarolo – que caprichosamente oferecia um degrau ao passageiro quando este abria a porta, tendo em vista a altura da máquina em relação ao chão.  

Outro ponto nebuloso é a relação com a indústria – da qual a opinião unânime, entre os entrevistados, é que ela não dá nada de graça. Tudo é ou será cobrado. Ao mesmo tempo, também não há uma crítica clara e direta de produtores endereçada às fumageiras. O mesmo acontece em relação aos atravessadores, que geralmente são produtores da região ou ligados intimamente às lavouras de tabaco. 

“Quando o sujeito vota no Leite (Marcelo), vota no Pontarolo (Igor), ele está escolhendo alguém ‘deles’ para representá-lo. Mas na verdade não, ele está escolhendo alguém que a indústria quer que ele escolha. Só que ele acha que é ele que está escolhendo, mas na verdade foi a indústria que colocou ele lá pra você escolher”, reflete a advogada Vânia. Para ela é um tanto lógico que os atravessadores bem-sucedidos da região participem das eleições. 

Vânia não se refere a uma intenção direta das indústrias, mas a uma estratégia suave, que enriquece principalmente aqueles com o capital necessário para botar o preço na produção alheia. “Eles constroem uma mentalidade no produtor que, se você observar, eles estão desconstruindo aquela mentalidade do agricultor familiar e colocando na mentalidade desse agricultor aqui, que continua sendo um agricultor familiar, que ele é ‘Agro’.”  

“Haverá sinais” – música de Jorge & Mateus e Lauana Prado –, foi uma das faixas ouvidas no interior da caminhonete de Pontarolo, que zunia a muito mais de cem quilômetros por hora no retorno ao destino final. E realmente não há, na região e talvez em todo interior do Brasil, maior sinal de sucesso e de orgulho do que uma Ram urrando estrada afora.   

O Joio entrou em contato com as fumageiras mencionadas nesta reportagem e fez questionamentos sobre o papel dos atravessadores, as críticas sobre a classificação do fumo, sobre a demora na compra e sobre o Sistema Integrado de Produção. Apenas a Alliance One Brasil e a BAT Brasil responderam. Confira abaixo o posicionamento das empresas:

Alliance One

“A Alliance One Brasil reafirma seu compromisso com a produção responsável, seguindo integralmente os princípios do Sistema Integrado de Produção de Tabaco (SIPT) e prezando pela sustentabilidade em todos os elos da cadeia produtiva. Atuamos em conformidade com a legislação vigente, garantindo práticas transparentes e éticas, que respeitam nossos produtores, colaboradores, clientes e a sociedade como um todo”.

BAT 

“A BAT Brasil é pioneira no Sistema Integrado de Produção de Tabaco e compra todo seu tabaco diretamente do produtor, seguindo um rigoroso processo de integridade e compliance. Em 2024, teve renovada a Certificação de 100% da Produção Integrada, selo que é concedido pelo Governo Federal. A certificação garante a rastreabilidade e a segurança do produto, além de comprovar a origem e os métodos empregados em todo o sistema, por meio de registros formais e princípios de sustentabilidade”.

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